03/12/2019

VERBORRAGIA


Claridade. Despertador, música, sono, preguiça. Remela. Chuva, bocejo, chinelo, tropeção. Banheiro. Tampa, assovio, urina, chão. Espelho. Água, nariz, sabonete, toalha. Televisão. Café, leite, pão, manteiga. Bafo. Escova, pasta, gengiva, siso. Roupeiro. Terno, camisa, gravata, sapato. Estrada. Buzina, freio, estacionamento, calma. Pesadelo. Repartição, escada, sala, computador. Dinheiro. Futuro, sonho, sacrifício, destino. Tempo. Relatório, lentidão, prece, refeição.

Fome. Arroz, feijão, bife, ovo. Fila. Livraria, banco, banca, sorvete. Ponto. Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho. Cafezinho. Secretária, saia, panturrilha, loa. Chefe. Bigode, piada, suor, risada. Recomeço. Cadeira, óculos, chiclete, cacoete. Déjà-vu. Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho. Janela. Distração, passado, viagem, paixão. Fadiga. Drágea, pomada, massagem, emplastro. Desejo. Campo, árvore, fruta, sossego. Crepúsculo. Rebanho, porteira, alívio, rua.


Movimento. Povo, odor, fofoca, sombrinha. Carro. Rádio, atalho, multa, palavrão. Namorada. Confeitaria, beijo, morango, regime. Planejamento. Conversa, família, noivado, casamento. Carona. Banho, cama, língua, Tampax. Suspiro. Silêncio, vazio, cafuné, perspectiva. Novela. Abraço, sofá, relógio, noite. Olhar. Lágrima, remorso, reclame, porta. Ternura. Perfume, pele, toque, afinidade. Compensação. Dó, ré, mi, falo. Vento. Rosto, endereço, distância, paz.

Garagem. Correspondência, elevador, chave, luz. Blues. Cueca, cerveja, mensagem, amendoim. Telefone. Pai, mãe, irmão, prima-irmã. Luar. Sacada, rede, saudade, cochilo. Ablução. Barba, loção, reunião, prazo. Poltrona. Pé, pufe, arroto, controle. Futebol. Lateral, centroavante, cabeça, gol. Pizza. Borda, atum, calabresa, sobra. Caneta. Conta, lista, rabisco, passaralho. Modorra. Pepsamar, pijama, travesseiro, lençol. Madrugada. Refluxo, ronco, apneia, solidão.

19/11/2019

DIAS DE CRIANÇA (2)


Eu devia ter uns seis ou sete anos de idade, e isso já faz algum tempo. A tevê estava sintonizada numa luta de boxe. Logo ao lado, minha mãe passava roupas e cantarolava uma canção de Sérgio Bittencourt.


🎶 Olho a rosa na janela, sonho um sonho pequenino 🎶


Eu brincava com os meus carrinhos Matchbox e, de vez em quando, dava uma espiadinha no combate, no qual um mulato de calção preto permanecia fixo no meio do ringue, enquanto o outro, um loiro de calção vermelho, girava em torno dele.


🎶 Se eu pudesse ser menino, eu roubava essa rosa 🎶


O locutor, esgoelando-se, avisava que o juiz acabara de descontar mais um ponto do pugilista do corner rubro. Minha mãe, sem levantar os olhos da tábua de passar, me perguntou, fingindo interesse: "Ele disse pugilista ou fugilista, meu filho?"


🎶 E ofertava, todo prosa, à primeira namorada 🎶


Com propriedade, eu que já era um ás no boxe, apesar da pouca idade, impostei minha voz aguda para respondê-la: "Acho que ele disse fugilista, mamãe, porque esse branquelo fica fugindo o tempo todo!"


Ela assentiu e continuou cantarolando a melodia, agora sem a letra.


29/10/2019

DA VIDA SEXUAL DOS IDOSOS


Os velhos se reuniam no boteco todas as quintas-feiras. Chegavam por volta das dezenove horas e sentavam-se sempre ao redor da mesma mesa. Bebiam cerveja sem álcool, beliscavam petiscos com pouca gordura e falavam sobre suas amantes. Um dizia que estava mais potente agora do que na juventude, graças à pouca idade da gatinha com quem andava saindo; o outro contava que sua atual concubina o proibira de manter relações com a própria esposa, quebrando-lhe o vidro do carro como alerta; um terceiro lamentava-se por gastar em caixas de Viagra o dobro das compras mensais de supermercado; e o último confidenciava que passara a pagar a faculdade da amásia em troca de alguns chamegos fora dos padrões. A conversa fiada se repetia a cada semana, encontro após encontro: um tentando se vangloriar mais do que os outros. Às vinte e três horas, pontualmente, rachavam a conta e partiam em desabalada carreira. Enquanto não ficassem viúvos, ai daquele que aparecesse em casa depois da meia-noite.

As velhas jogavam canastra todas as quintas-feiras. Começavam cedo, perto das cinco da tarde, após um chá ou café acompanhado de bolinhos de chuva. Às vezes tomavam um Kahlúa – mas só as que não fossem dirigir depois – e falavam mal de seus homens e suas respectivas amantes. Uma dizia que, por sorte, não precisava mais cumprir as obrigações do casamento, já que o esposo andava às voltas com uma adolescente de quarenta anos; a outra dava risadas sempre que lembrava das tentativas do marido de explicar o vidro do carro em pedaços; a terceira contava que todos os meses fazia compras de supermercado também para os filhos, para as irmãs e para a faxineira; e a última comemorava o fato de seu velho companheiro nunca mais ter sugerido nenhuma prática contrária às leis da natureza. Divertiam-se muito, disputavam ao menos seis partidas e, lá pelas vinte e duas horas, despediam-se calorosamente. Faziam questão de estar em casa antes dos parceiros, apenas para ter assunto na semana seguinte.

Era às quintas-feiras que ela mais faturava. Podia escolher entre sair com os homens que ligavam por causa do anúncio no jornal ou atender aos clientes da boate nos fundos do próprio estabelecimento. Enquanto retocava a maquiagem, esforçava-se para não pensar em seus outros "padrinhos". Um deixava duas notas de cem reais em seu criado-mudo, apesar de sofrer de ejaculação precoce e jamais tê-la penetrado; o outro era depressivo, cobrava-lhe demonstrações públicas de afeto, mesmo que beirassem a violência; um terceiro comprava dela, semanalmente, várias caixas de Viagra falsificado, o que lhe rendia trezentos por cento de lucro sobre cada lote; e o último oferecera-se para pagar a mensalidade de sua segunda faculdade, dessa vez de Secretariado Bilíngue, em troca de uma simples inversão de papéis. Desdobrava-se tentando encaixar todos os encontros na agenda atribulada, mas não perdia o sono por isso. Sempre soube que os homens são extremamente estúpidos. E que tornam-se ainda mais estúpidos quando envelhecem.

22/10/2019

DE CUJUS


Eu nunca tinha ido a um velório. Nem dos mortos da minha família nem da família de ninguém. Mas acabei indo a esse, só para fazer média com a menina com quem eu estava saindo. Ela choramingou um "fica do meu lado" tão fofinho que não pude recusar. Além do mais, o falecido em questão era seu avô materno, dono de um considerável patrimônio em terrenos e salas comerciais, prometido em vida à neta predileta no caso de óbito repentino e irreversível. Era o caso, aparentemente.

Na modesta capela da funerária, uma multidão de parentes se aglomerava. Fiquei do lado de fora enquanto pude, consolando a minha pequena, oferecendo o ombro para que ela derramasse suas lágrimas e contando a quantidade de arranjos e coroas de flores espalhadas por todos os lados, do pátio externo ao entorno do caixão. Uns choravam, outros sorriam. Sim, sorriam. Um sorriso de Monalisa, prontamente transformado em pesar quando da aproximação de algum descendente mais íntimo do defunto.

Os jovens, entre adolescentes e adultos imaturos, alguns vindos da cidade vizinha, reunidos num canto afastado, já combinavam programa para a noite. Os idosos, sentados nas poucas cadeiras disponíveis no local, tentavam adivinhar quem seria o próximo a dobrar o Cabo da Boa Esperança, pois regulavam em idade com o cadáver.

Em circunstâncias nada ideais, fui apresentado a vários primos, primas, tios, tias, amigos e amigas da família para a qual eu pretendia entrar. Educadamente, apesar da insistência da ala masculina, me recusei a contar piadas que alegrassem o ambiente e me dispus a confirmar os resultados dos jogos do Brasileirão depois do enterro.

Alheio ao movimento à sua volta, o avô da futura mãe dos meu filhos repousava lúgubre, decúbito dorsal, no caixão aberto.

Quando a neta foi entrando no salão, me puxando pela mão, tentei resistir delicadamente, mas não houve jeito. Eu ia chegar perto de um morto pela primeira vez na vida, e logo de um homem a quem nunca tinha visto mais gordo  nem mais branco nem mais gelado , parecido com uma vela de sete dias derretida, de terno e gravata, com algodõezinhos no nariz.

A fila para o último adeus diminuía. Atrás da namorada e imediatamente à frente da viúva, ambas aos prantos, procurei imaginar como se age ou o que se diz numa hora dessas. Não que eu tivesse qualquer obrigação, afinal, nem sabia o nome do patriarca, apenas queria evitar um fiasco em pleno funeral, antes de firmar compromisso.

Cara a cara com o de cujus, em pensamento, pedi uma bênção para o romance que se iniciava. O falecido pareceu entender o recado. Emitiu um som semelhante a um peido, só que com a boca. Em seguida, expirou o ar derradeiro dos pulmões, atirando longe a bolinha de algodão de uma das narinas. Definitivamente, aquilo era um "não" em forma de suspiro. Sem que ninguém notasse, cobri rapidamente o orifício nasal do velho, persignei-me e saí de fininho. Direto para o banheiro da capela mortuária.

15/10/2019

COMPOSTURA NA PUBLICIDADE


Sentei-me numa das pontas da grande mesa da sala de reuniões. A moça da cozinha já servira a água e o café, Miguel já estava ao meu lado. Ainda de pé, a assistente de atendimento conversava animadamente com o diretor de arte da campanha. Todos aguardávamos o cliente, um empresário, dono de uma gigantesca loja de calçados, e um de seus gerentes, aos quais apresentaríamos meia dúzia de anúncios para revistas e jornais, um folder com as promoções do mês e algumas sugestões de outdoors simples e duplos.

– Tá por dentro de tudo, né? – Miguel perguntou, preocupado.
– Relaxa, passei a noite estudando as peças.
– Ficaram legais, né?
– Pra quem são, ficaram ótimas.

A porta de vidro se abriu e a recepcionista fez entrar um senhor grisalho, de terno e gravata, que, não fosse a cara fechada, poderia ter sido apresentador de qualquer programa de auditório da década de 1960. Logo atrás, bem mais à vontade e rebolativo, o coordenador de marketing da rede calçadista.

– Boa tarde, senhores – disse o velho, sem entusiasmo.

Sentaram-se nas cadeiras à minha esquerda. Ambos esfregaram as mãos, mais para mímicos siameses do que para executivos. Cutuquei Miguel com o cotovelo para fazê-lo entender que poderia começar seu discurso e mostrar as pranchas com os layouts e o boneco do folheto.

Assim que o meu amigo redator começou a falar, flutuei por sobre a mesa, como se tivesse ingerido alguma droga lisérgica, observando tudo e todos de fora do meu corpo. Vi a mão do diretor de arte na coxa da assistente de atendimento; vi a cara de nojo do velho e a cara de tédio de seu aspone gay; acompanhei o esforço da equipe para tentar aprovar um material sofrível, com fotos mal escolhidas e fontes inadequadas, que, na opinião dos criativos, poderia até ganhar prêmio em Cannes. E me vi na cabeceira da mesa, ainda com boa aparência, um ou outro fio de cabelo branco, mais para coroa do que para jovem, com ares de intruso, de bicão, de ator de pegadinhas.

– Onde estão as fotos da minha neta que eu pedi para colocar?
– Desculpe, senhor, as fotos não tinham qualidade – respondi.
– Mas vocês são pagos para fazer o que eu mando!
– Opa, peralá! Somos pagos para fazer a divulgação da sua loja...
– E fazem muito malfeita, por sinal.
– É que não dá pra fazer milagre com aquela espelunca – arrematei.

O velho pulou da cadeira. Também fiquei de pé e quase encostei meu nariz no dele. Pude sentir o fedor de pinho do seu Très Brut De Marchand na pele enrugada. Alterado e corado, ameaçou:

– Essa loja está na família há cem anos, seu moleque!
– Pois então o senhor enfie essa loja no seu cu centenário!

Houve princípio de quiproquó. A reunião seguinte, na tarde do mesmo dia, seria com os outros sócios da agência de propaganda. Na pauta, a minha exclusão do contrato social, em definitivo.

08/10/2019

SETE VIDAS


O velho caminha lentamente, apoiando-se no cabo da pá que carrega na mão esquerda. Na mão direita, um saco de lixo com o cadáver do gato de estimação. Toma mais um pouco de ar e continua rumo aos fundos do terreno. Sente os pulmões ressecados, a musculatura frouxa pela falta de exercícios, as articulações dormentes. Vai entrando pela sombra das árvores. Repara na abundância de verde, mas não se impressiona. Ignora a natureza e suas belezas, como fizera desde sempre. Estaciona-se. Inspira, expira. Escolhe um ponto de chão mais macio e marca um xis com o bico do sapato. Encosta a pá no muro, larga o embrulho com a criatura morta. Olha em volta, num gesto mecânico.


O velho, que nem é tão velho se comparado aos outros velhos, começa a cavar sem ânimo. Enfia a ferramenta no solo, usa um dos pés para empurrar mais fundo, faz a alavanca e arranca um naco de barro misturado com areia e capim. Tenta acelerar o processo, mas consegue apenas acelerar seus batimentos cardíacos. Vai amontoando a terra ao lado do buraco, que nem precisa ser tão largo nem tão profundo, pois o corpo na sacola não é de um felino adulto. Inspira, expira. A camiseta vai grudando em suas costas.

Apronta o funeral da melhor maneira que suas forças permitem. Gostaria de ter preparado enterros como aquele para muita gente: para quem gostava pouco, para quem não gostava, para quem odiava. No entanto, ele mesmo morrera antes, de certa forma. O velho goteja de suor em pleno inverno. Um suor que desce pela testa e vai se acumulando nas sobrancelhas.

Não imagina quanto tempo se passou desde que saiu do quarto. Meia hora, talvez. Mas é improvável que sintam sua falta. Então desenrola o saco plástico e deixa cair o bicho, já endurecido, a pelagem alaranjada sem nenhum brilho ou maciez. Chuta-o para dentro da cova, sem pompa nem cerimônia. Dedica alguns segundos a avaliar toda a cena antes de puxar o barro de volta, cobrindo-o rapidamente, como se tivesse receio de que o animal pudesse reviver e fugir. Aguentaria um fantasma ou dois ou três, qualquer um de seus fantasmas assombrando suas noites, mas não resistiria se voltasse a ter a companhia de um único ser vivo. Enterraria a si próprio antes que isso acontecesse.

O velho olha em volta novamente. Inspira, expira. Ajeita a areia que cobre a sepultura, encosta a pá outra vez no muro e procura por uma nesga de brisa. Não sabe se deve rezar, cantar uma canção em homenagem a todos os gatos do mundo ou só virar as costas e ir embora. Abaixa a parte da frente do moletom, segura o pênis flácido, puxa para trás toda a pele que recobre a glande e aponta-o para a terra recém-remexida. Concentra-se um pouco e mija com dificuldade. Depois se recompõe para fazer o trajeto de volta.

Sunrise Cat (Caroline Conkin, 2014)

Diante do retorno tormentoso, o enterro minimalista parece ter sido a parte fácil da tarefa. Não tormentoso de tristeza pelo gato, longe disso. É que já não pode percorrer nem mesmo pequenas distâncias. Ao menor sinal de palpitação, caga-se de medo de perder os sentidos sem ser notado, nos fundos do quintal da clínica, por exemplo, em meio à mata por onde somente ele costumava se embrenhar de vez em quando. Apoia-se na pá, faz dela uma muleta. Não fosse o desleixo da roupa, poderia se fazer passar por um profeta com o seu cajado. Bem, não por um profeta, na verdade, apenas por um maluco bisonho.

Na metade do caminho inverso, avista um dos enfermeiros. O velho para e observa, a fim de divertir-se com o andar desengonçado e a falta de habilidade do serviçal em mover-se pelo terreno irregular.

– Bom dia, seu Dávide!
– Não é Dávide, é Dêividi.
– Chegou uma encomenda pro senhor, coloquei no seu quarto.
– Que merda.
– Deixa que eu levo essa pá...
– Toma, vai na frente.

O velho ainda permanece parado por alguns instantes enquanto espera o rapaz sumir pela trilha. Em seu íntimo, gostaria de ser atingido por um raio em vez de precisar voltar ao asilo. Suspira. Retoma a passada lenta. Aproxima-se do casarão de paredes azuis, telhado azul, janelas e colunas azuis. Agora a passagem de pedregulhos transforma-se numa calçada lisa e bem cuidada. Inspira, expira. Sobe um par de degraus e dá apenas mais quatro passos sobre o piso estampado em direção ao hall de entrada, e dali ao corredor que leva aos dormitórios.

Tropeça na caixa de papelão logo que empurra a porta. O embrulho se mexe. E se mexe novamente. Um miado muito fraco vem de seu interior e o velho nem precisa abri-lo para entender o que está acontecendo.

– Esse gato não morre nunca... filho de uma puta!

01/10/2019

NOTA DE FALECIMENTO

Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia.
(...) No espelho, essa cara não é minha.


Tenho um amigo que sempre soube que não chegaria aos cinquenta. Morreu antes, bem antes. Na verdade, veio morrendo amiúde, até quase atingir meio século de idade. Virou um arremedo de ser humano.

Da criança quieta ao adolescente inquieto, e de lá ao homem absolutamente deslocado no mundo, foi ficando mais triste, mais pobre, solitário, menor. Corcunda, magro, anêmico, impotente. Foi perdendo o vigor, o brilho, a esperança. Esquecido, cansado, incompreendido. Um cão sem dono, uma árvore no outono. Definhando.

Não por doença nem por nenhuma fatalidade, apenas pela vida mal vivida. Quem dera fosse envenenamento, acidente, tiro, amor, cólera, punhalada nas costas. Ele só morreu e pronto. Não encontrou razão para continuar, não vejo nada de espantoso nisso.

Simplesmente não sonha mais nem quer chegar a lugar nenhum. Não foi o que pretendia ser nem pretende ser diferente do que é. Pela primeira vez, não tem paixão nem ódio dentro de si. Toda a responsabilidade e dedicação, toda a ética e sensibilidade, enfim, virtudes das quais se orgulhava, nunca tiveram utilidade. Cultura? Criatividade? Lérias.

O tempo foi passando, as rugas foram aparecendo, os cabelos embranquecendo. E ele se transformando numa criatura abominável, intolerante, amargurada, incapaz de conviver com seus semelhantes. Um zé-ninguém, um zero à esquerda, um qualquer. Inábil, infeliz. Morto por dentro e por fora. Aquele que não sabe a diferença entre o certo e o duvidoso, entre o bem e o mal, entre o céu e o inferno.

Ele confessa: não presta. E também não existe. É um homem invisível, um perdedor, o cara que todos amam detestar. Será sempre aquele que não nasceu para aquilo. Cada vez mais desajustado, cada vez pior. Com frio, com fome, a pé. Sem dinheiro, sem parentes, atroz.

Contudo, calado. Cem ressurreições seguidas, até não haver mais saída. E nem foi preciso pular do alto de um edifício ou se atirar na frente de um caminhão. Bastou ter coração, personalidade, acreditar na sorte.

Dizem que o fim chega logo para canalhas como ele, sem berço, sem estrela. Do tipo que não se vende, que não recua, que não chora. Da categoria dos excluídos, dos esquisitos, dos que não foram abençoados. Dos que fazem de tudo um pouco e quase tudo mal feito. Insosso, insípido, inodoro. Frio, de alma canhestra.

Esse meu amigo jura que lutou, mas perdeu a guerra. Tomou o trem errado, saltou no bairro errado, viveu uma vida que não era a sua.

E agora morreu, antes mesmo dos cinquenta, como havia imaginado. Sem plantar uma árvore, sem ter um filho, sem escrever um livro. Anônimo. Gauche desde o início. Somente um peso, um estorvo, um cadáver. Amontoado disforme de culpas e cinzas.

E vazio. Imensamente vazio, ele me contou.

10/09/2019

MISTUREBA


Percebi que a rapariga do caixa me olhou de um jeito esquisito quando fiz o pedido. Provavelmente eu era o primeiro cliente na história da lanchonete a escolher uma combinação tão extravagante, e talvez por isso ela tenha aguardado a minha terceira confirmação verbal antes de gritar debochadamente para o pessoal da cozinha:


– Um McFish e um capuccino de meio litro, por favor!


Na semana passada, num restaurante italiano, daqueles em que se pode combinar livremente os ingredientes dos pratos, me aconteceu episódio parecido. Eu andava com vontade de experimentar o nhoque da casa e, ao mesmo tempo, com um desejo gestatório de comer espaguete à carbonara. O garçom, muito gentilmente, anotou o pedido.


– Qual massa, senhor?

– Nhoque.
– E o molho?
– Carbonara.
– Tem certeza?
– Por que, não pode?
– Pode... mas é estranho.

Quando anunciei que ia beber suco de abacaxi com hortelã para acompanhar, achei que ele fosse me bater com o cardápio na cara.


Inexplicavelmente, trinta minutos depois, um segundo funcionário veio servir a gororoba (admito, a aparência não fez jus ao sabor), enquanto o primeiro tomava um Plasil em outro setor do estabelecimento.



Ora, quem não tem lá as suas esquisitices gastronômicas? Meu irmão mais novo sempre come bolacha maria besuntada com o feijão que sobra do almoço; tive uma vizinha que amassava abacate com sal e pimenta em vez de açúcar e limão; eu mesmo, bebo café gelado e prefiro Coca-Cola sem gás. Além do mais, existem tantas harmonizações inviáveis – culinárias ou não – que ninguém contesta, como a Dakota Fanning fazendo papel de refugiada muçulmana, por exemplo. A democracia e o governo brasileiro também são coisas que não combinam, mas aí já é assunto para outro texto.

Voltando ao nosso tema: o que pretendo dizer é que nem a moça da lanchonete nem o garçom do restaurante têm o direito de torcer o nariz para nenhum pedido de nenhum cliente, por mais bizarro que pareça (o pedido, não o cliente). Cada um sabe de suas potencialidades digestivas e faz a mistureba que bem entender, dane-se a opinião alheia.


Por isso, não quero nem imaginar o que dirão os franceses se souberem que costumo raspar toda a cobertura do croque-monsieur ou como reagirão os enofílicos assim que eu revelar que tenho aqui, ao lado do computador, daqueles copos tipo long drink, com vinho importado, muita água, gelo, adoçante e um canudinho flexível.


03/09/2019

LETRA & MÚSICA (2)


O casal de aficionados da MPB e do pop-rock nacional, divorciado há cinco anos, volta a se encontrar no mesmo barzinho com som ao vivo, na mesma minúscula mesa redonda. Ela tenta quebrar o gelo:

– Como vai você? 
– Tenho o que me falta e o que me basta, no mais é ficar só.
– Eu fico à vontade com a sua ausência...
– Eu quase não saio, eu quase não tenho amigos.
– Vai melhorar... é bola pra frente, depende da gente.
– Sou um presidiário cumprindo sentença.
– Pois vai curtir seu deserto, vai.
– Mas te vejo e sinto o brilho desse olhar...
– Você foi dar um mergulho e por pouco não se afogou.
– Eu percebi trauma, que eu vivi um trauma.
– Tente outra vez!
– Eu só preciso ter você por mais um dia.
– Eu, hein? Nem pensar.
– Estranho, mas já me sinto como um velho amigo seu.
– Pois é, não deu.
– Me diz por onde você me prende...
– Será que é tempo que lhe falta pra perceber?
– Tempo, tempo, mano velho!
– Fique feliz, na boa, e tudo vem.
– Tente passar pelo que estou passando...
– Esqueça de mim, que, afinal, pra esquecer você tem experiência.
– Me dá um beijo, então.

Beijam-se despudoradamente durante alguns minutos. O que ele imaginou ser uma reconciliação, para ela era uma tardia vingança. Pedem mais dois chopes, uma porção de fritas e retomam o diálogo.

– Eu bebo um pouquinho, pra ter argumento.
– Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar...
– Se você disser tudo que quiser, então eu escuto.
– Eu gosto é de mulher!
– Isso me dá tic-tic nervoso!
– Quando entrar setembro e a boa nova...
– Quem é ela?! Quem é ela?!
– Isso do medo se acalma, isso de sede se aplaca.
– Meu rosto vermelho e molhado é só dos olhos pra fora.
– Tanta coisa muda nessa hora, que o mais valente dos homens chora.
– Ok, você venceu.
– Acabou. Boa sorte!
– Não esquece de mim, mesmo que seja ruim.
– Cuide-se bem... perigos há por toda a parte.


Gabarito: Antônio Marcos, Sérgio Sampaio, Toni Platão, Dominguinhos e Gilberto Gil, Maria Rita, Vander Lee, Toquinho e Vinícius, Cidadão Quem, Camisa de Vênus, Clínica (Fernando Salem), Raul Seixas, Lô Borges, Kleiton & Kledir, Nando Reis, Los Hermanos, Marina Lima, Lenine, Pato Fu, Zizi Possi, Luiz Melodia, Pimpinela, Lulu Santos, Nana Caymmi, Geraldo Vandré, Secos & Molhados, Ultraje a Rigor, Magazine, Beto Guedes, Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Frejat, Benito Di Paula, Blitz, Vanessa da Mata, Wander Taffo (Rádio Táxi), Guilherme Arantes.

LETRA & MÚSICA LEIA AQUI

27/08/2019

A LENDA*


Acabara de deixar um passageiro em Higienópolis. Longe de seu ponto, mas aproveitando que já estava por ali, resolveu procurar a oficina que lhe recomendaram, em algum canto do Jardim Lindoia. Precisava ver o que era esse barulho no motor, cada vez mais agudo, sempre que acelerava. "Correia dentada... só pode ser correia dentada", pensava ele, ao mesmo tempo em que correspondia ao aceno de um transeunte.


Mauro Edson Santana Castro, o taxista mais famoso de Porto Alegre, nunca fora afeito a manutenções periódicas em seu veículo. Preferia trocar de carro (como fizera recentemente) a consertar pequenos defeitos. No entanto, o caso agora era diferente: com o táxi ainda na garantia, não se conformava com a incompetência da rede autorizada, que não havia descoberto o defeito em duas revisões seguidas. Por isso, meio a contragosto, estava prestes a apelar para uma suspeitíssima mecânica de fundo de quintal.


Quando avistou a placa, na qual a palavra "suspensão" aparecia escrita com cê-cedilha, não teve dúvidas de que chegara ao seu destino. Ao descrever os sintomas para o mecânico-chefe, descobriu que correia dentada não existe mais (modernamente fala-se apenas "correia") e que o problema era de simples solução. "Nada que uma enceradinha com vela de sete dias não resolva", concluiu o curandeiro automobilístico do estabelecimento. Assim, aliviado com a notícia do baixo custo do conserto, bateu-lhe uma tremenda vontade de fazer xixi.


Corajosamente, Mauro encaminhou-se ao banheiro que ficava na parte de trás da oficina, ao lado da máquina de calibragem. No ambiente, ricamente decorado com calendários de garotas seminuas, encantou-se com uma loira de olhar distante e seios fartos. Permaneceu alguns segundos hipnotizado diante dela, sobretudo por uma pinta próxima ao canto esquerdo do lábio superior, no melhor estilo Cindy Crawford. Pensou em arrancar a página da folhinha como recordação, mas contentou-se em fotografá-la com a câmera do celular.


Pouco depois, já no caminho de volta para o seu ponto (na esquina da rua Saldanha Marinho com a avenida Getúlio Vargas), recolheu uma passageira que lhe fazia sinal desesperadamente. Pelo retrovisor, logo que a mulher guardou os óculos escuros num estojo, ajeitando-se nervosamente no banco traseiro, Mauro a reconheceu e não se conteve:


– Santa Francisca Romana! Mas é a loira do banheiro...


Constrangida, a modelo baixou os olhos e pôs-se a procurar algo em sua bolsa. Não era um telefone nem maquiagem nem nenhuma arma de fogo. Finalmente, agora sorrindo enigmaticamente, pegou uma caneta e um exemplar bastante surrado do livro de crônicas lançado pelo calvo chofer de praça em 2006. Com as mãos trêmulas de emoção, cutucou-lhe o ombro e sussurrou com voz rouca, suplicante:


– Escreve aí, seu Mauro: "Para Gislaine, com carinho", por favor.



*Crônica antiga, de 2009, em homenagem ao amigo Mauro Castro, autor dos quatro volumes de "Táxi Tramas: Diário de um Taxista", que viraram até série de TV, pela Prime Box Brazil, em 2019.

13/08/2019

UMA NOITE EM 89


Completara dezoito anos, mas ainda não sabia dirigir. Os vizinhos contemporâneos já davam voltas pelo quarteirão desde os quatorze, nos carros dos pais, enquanto ele, humildemente, fazia todas as suas viagens a pé ou de bicicleta. Que perdedor! Mesmo assim, sem que houvesse explicação para isso, as garotas se apaixonavam. Talvez por que fosse fã de Suzanne Vega e tivesse uma banda de rock.


Em seu bairro, no lugar onde hoje fica o Seven Rocks, existia outro bar, no qual as bandas locais podiam tocar cinco ou seis músicas por noite em troca de cervejas. Uma garrafa para cada integrante e mais nada. Por ser simpático, criado nas redondezas, permutava a bebida a que tinha direito por duas latas de Coca-Cola, uma para o começo e uma para o fim da jornada. Esse antigo estabelecimento era sombrio, com paredes pichadas e uma única lâmpada verde acima do palco. Nem era exatamente um palco, somente um tablado, em que cabiam grupos de pós-punk de três elementos, bem como big bands de doze músicos, incluindo naipe de metais. O público, os de sempre: pessoas conhecidas umas das outras, apesar de não se conhecerem de fato.


Há muito abandonara a ideia de virar músico profissional, não se dava com os caras que tocavam com ele ou com quaisquer caras do meio musical. Entretanto, havia uma garota que frequentava os shows – um dia na semana, todas às quintas – e que, de certa forma, não o deixava desistir. Várias vezes convenceu a banda a abrir mão de se apresentar em lugares melhores, com cachê, apenas para revê-la. Não era o tipo de mulher por quem um homem se masturba diariamente, nada disso. Para ele, ela não tinha peitos nem bunda nem vagina, tinha só olhar e sorriso, ambos de efeito hipnótico.


Antes de aceitar uma carona e levar seu contrabaixo para junto do restante dos instrumentos, mirava o ambiente. Precisava certificar-se de que ela estaria em algum canto, com seus olhos negros e cabelos azuis ou olhos azuis e cabelos negros (a luz esverdeada o fazia confundir as cores), discretamente a observá-lo, num jogo indefinível. Dançava, bebia, cantava e, ao final de tudo, desaparecia sem que ele pudesse lhe oferecer um refrigerante.

Quando o bar estava prestes a mudar de dono  para depois transformar-se no refinado e iluminado Seven Rocks , houve uma espécie de festival, com todos os grupos que por lá passaram nos últimos anos. Ao jovem baixista, já não interessavam as lembranças nem as bebidas nem a festa, queria vê-la novamente e, se lhe brotasse alguma coragem, pediria seu número de telefone.


Passava das quatro horas da madrugada. A van da banda buzinava na calçada, em frente à porta de entrada. Procurou a garota e entrou em pânico ao percebê-la se aproximando. Era quase tão alta quanto ele e tinha uma pele alva e lisa como jamais vira na vida. Ela deu um beijo em seu rosto, desconsiderou sua franja ensebada e disse com uma voz grave, mais adulta do que indicava a frágil aparência:


– My name is Luka!


06/08/2019

A BIBLIOTECÁRIA


Era um convite de casamento. E o fato de não ter remetente nem carimbo de postagem significava que fora deixado ali pessoalmente. Da inicial lentidão, Paulina passou a acelerar o processo de abertura do envelope, rasgando-o completamente. Ao reconhecer o nome e o sobrenome de um de seus ex-namorados, o único por quem fora verdadeiramente apaixonada, lembrou-se de uma canção de Reginaldo Rossi e não conteve as lágrimas.

Com as lentes dos óculos embaçadas pelo choro, seguiu para o trabalho. Pelo caminho, ia lendo e relendo todos os dados impressos em papel vergê no convite humilde, do nome dos pais da noiva ao endereço da capela em que a cerimônia seria realizada, no município de Schroeder, ao norte da pacata Jaraguá do Sul do final da década de 1990. A distância até a Biblioteca Pública Municipal Rui Barbosa, no centro da cidade, parecia ter dobrado naquela manhã de segunda-feira. Mesmo assim, Paulina chegou no horário.

Durante todo o expediente – e no restante da semana –, classificou livros e revistas com os códigos invertidos, além de guardá-los na seção errada. Confundiu, em diversas ocasiões, a Classificação Facetada, na qual os documentos mais complexos sofrem sucessivos desdobramentos a fim de facilitar-lhes a compreensão e o arquivamento, com a Classificação Decimal Dewey (CDD), bem mais simples, utilizada para agilizar a localização de material em qualquer parte do acervo. Nas prateleiras organizadas recentemente pela bibliotecária, tornaram-se comuns os encontros de Carl Sagan e Carl Jung no espaço destinado à literatura oriental ou de Cora Coralina e Cora Rónai no estande dos semanários.

Apesar da paixão com que costumava se entregar ao ofício, não conseguia parar de pensar no grande amor de sua vida nem na proximidade da data do casamento. O homem a quem ela dedicara quase cinco anos da adolescência e da juventude ia se casar com uma desconhecida em menos de dez dias.



Conheceram-se por acaso. Ele, ainda muito novo, havia perdido quase toda a visão em decorrência de uma retinite pigmentosa, doença ocular degenerativa de acentuado caráter hereditário. Paulina o avistou pela primeira vez próximo a uma construção tentando ler um muro de chapisco, imaginando tratar-se de um outdoor em braille. Encantou-se imediatamente com sua ingenuidade e com sua delicadeza. Após o terceiro ou quarto encontro, ele já era incapaz de ir a algum lugar sem ela ou de criticar sua maneira bisonha de se vestir.

O fim do romance foi inesperado, porém, previsível. Enquanto Paulina estava de mudança para Florianópolis, onde cursaria Biblioteconomia na UFSC, ele decidiu seguir sua rotina como instrutor de uma autoescola no próspero município de Corupá, maior produtor de bananas de Santa Catarina. Não houve despedida nem juras de amor. Nem nunca mais deram notícias um ao outro.

Agora, na véspera do matrimônio para o qual fora convidada, estava agitada. Preferia não ter sido lembrada pelos noivos. Perdida num turbilhão de pensamentos desconexos, não conseguiu dormir durante toda a noite de sexta-feira. Precisava libertar-se do passado, precisava fazer com que aquele sábado de maio fosse apenas mais um sábado sem importância.

Ao despontar dos primeiros raios de sol, finalmente, tinha um plano. Perfeito, infalível. Paulina levantou-se, tomou um banho, vestiu sua melhor roupa, contou as notas de dinheiro na carteira e saiu, decidida a fazer o que qualquer mulher faria em seu lugar. Primeiro cortou os cabelos bem curtos; depois comprou três pares de sapatos no crediário. A plástica no nariz aquilino, infelizmente, teria de esperar mais um pouco. Talvez até a sua próxima licença-prêmio.


02/07/2019

UM FURTO FURTIVO


Roubaram o meu capacho. E não me refiro a nenhum aspone puxa-saco nem a nenhuma secretária adepta do serão extra noturno, não. Roubaram mesmo foi o tapetinho que fica do lado de fora da porta de entrada do meu apartamento.

Um caso muito estranho: cheguei do trabalho e ele, que é peludo, com formato e estampa de gatinho, não estava no lugar de sempre. Olhei primeiro pela janela do corredor, afinal, podia ter voado lá embaixo, como aconteceu há pouco tempo com o tapete de pele de urso de uma senhora do andar de cima. Olhei também na lixeira do prédio. Procurei nas portas dos outros apartamentos, pois a faxineira do período vespertino, já um tanto idosa, eventualmente promove uma dança de capachos no condomínio, inclusive entre os andares. Mas não, nada. Sumiu, desapareceu, escafedeu-se. A velhinha não viu, o porteiro não viu, o zelador não viu, o síndico não viu.

Claro que ninguém viu, certamente estão todos mancomunados com o larápio de adornos de piso que, por sua vez, deve servir a uma rede internacional de tráfico de pelegos com motivos animais.



Na minha lista de suspeitos, em avaliação preliminar, figuram as gêmeas do fim do corredor, sobretudo a mais antipática; o padre Parkinson, com menos chance, pois se ele pegasse o capacho ao meio-dia eu ainda o alcançaria antes das seis da tarde; a estudante solitária e tímida, provavelmente como forma de chamar a atenção antes de apelar para o suicídio; o pai solteiro, tendo como cúmplice a sua filhinha com cabelo de Playmobil, porque a menina decerto achara o tapete fofinho; e, por último, o velho pedófilo da porta ao lado, que pode tê-lo oferecido como mimo a uma de suas vítimas, dizendo carinhosamente: "dá uma pegadinha aqui no gatinho peludo do vovô, dá". O fato é que todos tinham um motivo razoável para cometer o crime.

Agora, de cabeça fria, passadas algumas horas da lamentável ocorrência, já não penso mais em denunciar nem em dar porrada no meliante ou na meliante que subtraiu o tapetinho da minha porta. Decidi que não vale a pena perder o sono por uma caganifância dessas. Amanhã compro outro capacho e pronto, também em formato especial, com desenho de bichinho, tão atraente quanto o antigo.

Por precaução, o próximo ficará colado ao chão com Superbonder, ligado a um sensor de movimento e a uma câmera fotográfica embutida no olho mágico. Eu sempre fui assim, desapegado das coisas materiais.


21/05/2019

ATA DA REUNIÃO DE CONDOMÍNIO


Aos dezenove dias do mês de maio do ano de dois mil e dezenove, em segunda chamada, o senhor síndico do edifício Dona Josefa, um moreno grisalho, com princípio de calvície, cujo nome me foge agora, visto que sempre que nos encontramos pelos corredores do prédio dizemos apenas "opa" um para o outro, iniciou a reunião extraordinária do condomínio pontualmente às vinte horas, na saleta dos fundos, a qual apelidamos carinhosamente de salão de festas. Estavam presentes a secretária do escritório de contabilidade, a quem chamaremos de "gostosa dos boletos"; euzinho, do apartamento trezentos e dois; além de uma idosa do primeiro andar, um casal gay da cobertura, uma mãe solteira com o filho de colo (estes não imagino de qual unidade, perdão), um lutador de artes marciais do quinto andar e a mulher do zelador, do apartamento funcional do térreo. A pauta, sem ordem específica, consistiu: 1. na prestação de contas do mês anterior, 2. na escolha das cores e no valor do rateio para a pintura da fachada, 3. na troca do nome do edifício, 
por sugestão minha. O síndico abriu os trabalhos dizendo "boa noite", ao que todos retribuíram com um muxoxo, e me ofereceu a palavra, a fim de que tratássemos de uma dúvida que sempre tive desde que passei residir no local: "quem diabos foi essa dona Josefa?", perguntei retoricamente. Ainda assim, houve quem levantasse a mão para responder, no caso, a senhora do primeiro andar, que não poupou energias para dirimir a questão e revelou modestamente: "eu sou a dona Josefa, meu falecido marido era o dono da construtora e quis me homenagear". Diante de um silêncio constrangedor, em que o ar poderia ser cortado com uma faca, retirei da pauta a mudança de nomenclatura e acrescentei minhas sinceras preocupações com a estrutura do prédio, principalmente quanto ao elevador em estilo gaiola, pois a julgar pela idade da musa do incorporador, concluiu-se que a obra era antiga pra, digo, para caralho. Em seguida, a gostosa dos boletos leu o relatório de despesas do mês anterior, e apesar de me parecer algo estranho a vultosa quantia gasta em produtos para a limpeza da piscina (sobretudo por que o empreendimento não tem piscina), não me manifestei, pois estava absorto em meus pensamentos, perguntando a mim mesmo como uma moça tão bonita podia ter a língua presa, que azar da porra. O síndico sugeriu passarmos diretamente ao último item, acerca da pintura, mas o lutador do quinto andar o interrompeu bruscamente, dirigindo-se, então, ao casal homoafetivo da cobertura, ameaçando cobri-los de porrada se não parassem de ouvir música eletrônica em alto volume durante a madrugada. Um dos rapazes alegres retrucou, chamando o pugilista de "orelha de couve-flor"; houve um princípio de quiproquó, prontamente amainado pela esposa do zelador, que certamente era maior do que o reclamante e tinha a voz mais grossa do que os proprietários da penthouse. Devido ao incidente, a criança da mãe solteira desandou a chorar, e esta, aparentemente uma mãe prestimosa, avisou que ia dar de mamar lá fora, ao que eu, solidariamente, recomendei: "imagina, está frio, pode amamentar aí mesmo, ninguém vai reparar". Em prosseguimento, foi concedido um minuto para que cada morador sugerisse duas cores para a nova pintura da fachada, uma para as paredes e outra para as sacadas; no entanto, como todos entreolhavam-se sem que nenhuma opção fosse apresentada, euzinho novamente, observando a vizinha que amamentava candidamente o seu bebê, propus em voz alta "bege com terracota" (se é que me entendem), e a combinação foi aprovada por unanimidade, a não ser pelo inconveniente de se pagar cento e cinquenta reais por mês na taxa de condomínio durante os próximos quinze meses. Diante da brochante notícia do inevitável rateio, os condôminos assinaram a lista de presença e concordância, mas ninguém teve apetite para aceitar o café com biscoitos, uns revelando que estavam de regime e outros alegando que precisavam voltar para casa porque estavam sentindo cheiro de gás. Em não havendo ocorrências a acrescentar, a gostosa dos boletos guardou suas planilhas numa pasta, dona Josefa guardou seu aparelho de surdez num estojo e a mãe solteira guardou os peitos dentro da blusa. Por volta das vinte e uma horas, encerrei o relato dos fatos, lavrados nesta ata, que deverá permanecer exposta no mural da portaria. Aproveitando o privilégio de ser o primeiro secretário da atual gestão, independentemente de não existir um segundo secretário, e antes que todos saibam por terceiros, aviso aos nobres vizinhos que não comparecerei à próxima reunião, pois já vendi o meu apartamento há quase seis meses e agora ficou meio contramão dirigir da puta que pariu onde estou morando até aqui, ainda mais sem poder rir de nada. Abração, digo, atenciosamente, AD.

14/05/2019

COMUNICAÇÃO


Eu estava de saída para levar a minha gata ao veterinário quando o telefone fixo tocou. Mesmo atrasado e não tendo reconhecido o número no identificador de chamadas, larguei a casinha com a bichana dentro e atendi pacientemente, torcendo apenas para que não fosse ninguém da Legião da Boa Vontade.

– Alô!
– É o senhor Dogman que está falando?
– É ele mesmo.
– Aqui é o Nailor, gerente do Banco Santo André.
– Pois não...
– Estou ligando para avisar que a sua conta está negativa.
– Meu amigo, eu nem tenho conta nesse banco.
– Bem, deve ter havido algum engano...
– Será?
– O senhor tem interesse em ser cliente do Santo André?
– Mas nem que fosse o último banco do mundo.
– Veja bem...
– Não vejo, não.

Respirei fundo, contei até dez e saí para cumprir a função de pai. Minha única filha (eu sei, é uma gata, não sou louco) acabara de passar por uma cirurgia para retirada de um tumor nas tetinhas e precisava consultar semanalmente.

Depois de alguns minutos na clínica, entre o momento de abrir a portinhola da jaula e a operação para resgatar a felina de cima do trilho da cortina, saí de lá com uma receita em mãos, na qual o zooiatra recomendava um 
spray miraculoso para ajudar na cicatrização. O papel timbrado, estampado com o logotipo de um cachorro enrolado em um estetoscópio, não deixava dúvidas de tratar-se de uma instituição de saúde estritamente animal.

Entrei, então, na drogaria mais tradicional da cidade, esquina de uma praça velha com um calçadão sujo. Abri a receita sobre o balcão e nem precisei de senha para ser atendido pelo farmacêutico.

– Meu jovem, por acaso tens esse remédio?

O rapaz, de jaleco impecavelmente branco, óculos bifocais, maior cara de cê-dê-efe e pinta de recém-formado, analisou o documento, leu e releu o nome do medicamento, coçou o queixo e perguntou, categórico:

– É para o senhor mesmo?
  

07/05/2019

FUTEBOL


Toc, toc, toc! Três batidinhas na porta dos fundos e eu já me apresentava de uniforme e arma na mão: camisetinha do Corinthians, bola de meia, pezinhos descalços.

– Aonde pensa que vai esse anjinho?

Por maior que fosse o silêncio e o cuidado, mamãe sempre me surpreendia na saída, e perguntava apenas por perguntar, ela sabia que era chegada a hora do futebolinho matinal.

– Põe a conguinha, meu filho, assim você acaba topando um dedo.

E eu saía sem dar ouvidos.

Na rua, tudo pronto. Era o dia da grande revanche contra o time do José Mendes, de camisetinha do Flamengo. O último jogo tinha sido um vexame: seis a zero (por que botei a bola debaixo do braço e saí de fininho). O juiz era o Maionese, albino, filho do seu Dadico da fiambreria, todo de preto, apito banhado a ouro, honesto até o último fio de cabelo.

Basset Hound (Fenella Smith, 2014)

O primeiro gol da equipe rival saiu logo a um minuto de partida. No mesmo embalo vieram o segundo, o terceiro e o quarto. Lá pelo oitavo, o Demóstenes, filho do Válter do açougue, inconformado com nova derrota, tentou uma arrancada espetacular pelo lado direito: passou por um, dois, três e pimba! Era a lajota do calçamento no fundo das redes.

Estava suspenso o espetáculo.

Coitado do Demóstenes, todo orgulhoso pelo nome bonito e todo engessado, inválido, sem poder andar.

– Não desiste não, gente, vai lá e pede outra revanche – dizia o valentão na visita do time.

Na manhã seguinte...

Toc, toc, toc! Três batidinhas na porta dos fundos e eu já me apresentava de uniforme e arma na mão: camisetinha do Corinthians, bola de meia, conguinha nos pés.


30/04/2019

AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA


Vou confessar a vocês: sempre gostei de escrever, desde pequeno. Os meninos da rua em que eu morava se reuniam para jogar bola, soltar pipa ou andar de bicicleta, e eu ficava em casa, escrevendo, tocando violão ou lendo. Escrevia letras de música, roteiros, poemas, pequenos contos e até um diário relativamente secreto.

Minha mãe, quando lia alguma redação nos meus cadernos de escola, dizia afetuosamente: "Tu levas jeito pra cacete, meu filho". A primeira namorada, que às vezes roubava o meu diário para ver se eu não andava apaixonado por outra, também comentava: "Você leva jeito pra cacete, Cachorrinho". E as professoras de Língua Portuguesa, apesar de me considerarem um tanto disperso, elogiavam com frequência: "O senhor leva jeito para cacete, pode acreditar".

Até que me tornei um cacete, pois parecia ser essa a minha vocação.

Claro que joguei bola, soltei pipa e andei de bicicleta. Namorei outras meninas depois da primeira namorada. Entretanto, foi só lá pela oitava série que ganhei a primeira nota dez em Redação. No mesmo ano, o aluno mais desajustado da escola, o Miguel, publicou um livro. Lembro que, na época, apenas pensei com os meus botões: "Porra". Imediatamente, comecei a desenvolver uma saga que levou todo o segundo grau para chegar ao fim. Era uma história – sobre um guri de onze anos que descobria que tinha um tumor no cérebro e precisava dar um jeito de comer a empregada para não morrer virgem – que não se aplicava nem a crianças nem a adolescentes, portanto, impublicável.

Desiludido com a primeira tentativa fracassada, deixei a literatura de lado e comprei uma guitarra. Foi um período de vacas gordas. E também de vacas magras, altas, baixas, loiras, morenas, mulatas, novas, velhas e japonesas. Sobre dinheiro, não posso dizer nada, mas é certo que músicos ganham mais mulheres do que escritores.

Já na faculdade de Letras, década de 1990, uma adorável professora de Literatura voltou a repetir a frase que me era tão familiar: "Você leva jeito, rapazinho". "Pra cacete?", eu perguntei. "Não, não, acho que você dá para cronista". Dessa vez não me deixei influenciar. Nunca dei nem para cronista nem para contista nem para poeta.

Então, o tempo passou. Muito mais tempo do que eu gostaria, aliás. Li bastante e escrevi pouco, até sofrer um espasmo de lucidez (talvez fossem gases, não tenho certeza) e ganhar novo ânimo para exercitar esse meu dom: o dom de transformar fatos irrelevantes em entretenimento barato. Acredito ser agora a derradeira chance 
 depois de um livrinho publicado, escrevendo o segundo, com o blog reativado – de deixar de ser o cacete que sempre fui. Além de preservar a integridade das minhas partes peripopéticas, sobretudo aquela onde o sol não brilha e que só a terra há de comer.
  

23/04/2019

BODAS DE VENTO


Foi num sebo do interior de São Paulo que David descobriu o livro de Gregory Corso (1930-2001). A raríssima edição compilada de 
Gasolina & Lady Vestal, autografada pelo autor, com prefácio de Allen Ginsberg, custaria a ele dois ou três meses de salário, mas não se importava com isso. Qualquer dinheiro sempre lhe parecia bem gasto se fosse para colocar um sorriso no rosto de Ângela, sobretudo na quinta-feira que se aproximava, data em que completariam dez anos de casados. Era o livro predileto dela, que, por sua vez, já havia desistido de procurá-lo depois que seu exemplar desaparecera ao final de uma comemoração de Ano-Novo no apartamento em que moravam. Desde aquele dia, David passara a perseguir a obra por todo o Brasil, como um investigador que persegue um criminoso, disposto a pagar qualquer preço pela publicação, apenas para ver a esposa feliz e livrar-se da culpa de não estar atento ao sumiço de um bem tão valioso.

Ainda era véspera das bodas de estanho quando tomou o avião em vez de ir trabalhar. Não havia tempo para esperar pela entrega dos Correios. Além disso, precisava certificar-se de que o livreiro não o enganaria. Podia se dar ao luxo de viajar pela manhã e reaparecer à noite sem ser notado, pois a esposa saía antes para a empresa de contabilidade na qual trabalhava e onde, quase sempre, o expediente se prolongava. Seus horários de almoço também não coincidiam. Ele, na agência de propaganda, fazia seu próprio horário, e almoçar não era uma de suas prioridades.

Enquanto aguardava a decolagem, não conteve um sorriso ao imaginar que seria bem mais lógico pegar carona na carroceria de um caminhão, carregando apenas uma mochila velha nas costas. Certamente o faria se pertencesse à geração 
beat. A senhora na poltrona ao lado cochilava e pendia a cabeça para o seu ombro. Bondoso, David nada fez. Permitiu que a sonolenta passageira fosse assim escorada até o seu destino.

Chamou um táxi, estendeu ao motorista o endereço anotado num retalho de papel e recostou-se no banco traseiro para apreciar a paisagem. Não estava preocupado. Conhecia a assinatura do escritor americano, saberia identificar uma falsificação. Pensou na esposa e em tudo que aprendera com ela sobre Literatura durante uma década inteira de convivência.

David conhecera Ângela logo no primeiro ano da faculdade. Cursaram jornalismo e contabilidade, respectivamente. E ele nunca mais deixou de amá-la, embora tivesse consciência de que a recíproca jamais alcançara a mesma medida. No ano passado, na comemoração de nove anos, deu a ela um buquê de rosas e um relógio. Ganhou de volta um 
pack com seis cuecas, as quais passou a usar diuturnamente, alternando as cores de acordo com seu humor. Desta vez, por mais modesto e impensado que fosse o presente de Ângela para ele, iria surpreendê-la com uma prova de amor incontestável, motivo de sua busca por uma cidade desconhecida, a bordo de um táxi velho e barulhento.

Pediu que o motorista aguardasse na porta do sebo enquanto fechava o negócio. Pagou com cartão de débito e recebeu a encomenda embrulhada em papel de seda, acomodada confortavelmente num estojo aveludado. Trocou breves palavras com o livreiro, um senhor franzino e corcunda, que se revelou razoável conhecedor do poeta nova-iorquino. Recitaram, em uníssono, o único verso da obra que ambos sabiam de cor:


Braços estendidos,
mãos espalmadas contra o parapeito da janela,
ela olha para baixo,
pensa em Bartok, Van Gogh
e nas caricaturas do New Yorker.
Ela cai!
Levam-na embora com um Daily News no rosto,
e um lojista joga água quente na calçada.


Faltou pouco para aplaudirem-se mutuamente.


Gregory Corso, em 1989 (foto: Dario Bellini)

David voltou ao táxi e ao aeroporto e à sua cidade e ao seu apartamento. Anoitecia. Como previu, Ângela ainda não chegara. Tratou de esconder o presente no fundo de uma gaveta cheia de cacarecos, onde jamais seria encontrado, nem mesmo pela diarista, que espanava tudo superficialmente duas vezes por semana e lhe cobrava mais de cem reais a cada visita. Precisava trocar de faxineira. Não gostava de superficialidades em nenhum aspecto de sua vida, muito menos em relação à limpeza da casa.

Ângela irrompeu pela porta quase uma hora depois do marido. Largou a bolsa, descalçou os sapatos e perguntou o que havia para comer. David a beijou na boca e sugeriu que ela tomasse um banho enquanto ele providenciaria o jantar. Comeram em silêncio. Ela quis dormir cedo. Ele, no entanto, ficou alerta até o meio da madrugada, ansioso pela manhã seguinte. Sentia-se como uma criança que sabia exatamente a resposta para a indagação que o professor faria na prova oral, aplicada de surpresa no meio da aula.

Quando o sol entrou pela janela do quarto, às seis e meia da manhã, David praticamente não tinha pregado o olho. Não sabia se corria para buscar o livro ou se esperava Ângela despertar. O que Gregory Corso faria em seu lugar? Trouxe o pacote até a cama, escondeu-o debaixo de seu travesseiro.

Ângela se remexeu, resmungou e, sem abrir os olhos, levantou e caminhou na direção do banheiro. Urinou, apertou a descarga, lavou as mãos e o rosto. Não compreendia muito bem o meio-sorriso do marido ao voltar para o quarto; contudo, num providencial lampejo, recordou a data. Apelou para a sinceridade, seguida de um abraço.

– Parabéns pelo nosso dia, amorzinho! Eu não comprei nada porque não tive tempo, você me perdoa, né?

Rápido como um voo de ida e volta ao interior de São Paulo, admirado da própria desfaçatez, ele respondeu:

– Ah, que bom... eu também não comprei nada e fiquei preocupado de você ficar chateada comigo... parabéns pelo nosso dia, amorzão!

Como acontecia todas as manhãs, Ângela se aprontou e saiu antes dele para o escritório de contabilidade. David telefonou para a agência e avisou que chegaria mais tarde. Ligou o notebook ao mesmo tempo em que desembrulhava a raríssima edição compilada de 
Gasolina & Lady Vestal, autografada pelo autor, com prefácio de Allen Ginsberg. Fez algumas fotos com o celular, inclusive da página assinada por Gregory Corso. Publicou o anúncio do livro de poesias em um site de vendas on-line, por uma pechincha equivalente a quatro meses de seu salário. Dane-se a geração beat, pensou sem remorso.
  

09/04/2019

VIAGEM


Laura se aproxima de casa, tira da bolsa a chave da portaria, olha com alguma displicência para o rapaz que vem atravessando a rua e vai entrando no edifício.

– Esqueci a minha chave, posso entrar com você?
– Não sabia que você morava aqui.
– Mundo pequeno, né?

Ela abre a porta e deixa que ele entre.

– De onde eu te conheço?
– Daqui mesmo.
– Não, de outro lugar.
– Da saída da escola, eu acho...
– É isso aí.
– Você não foi à aula hoje?
– Fui ao dentista.

Interrompem a conversa com a chegada do elevador. Laura aperta o sexto e ele apressa-se em apertar o oitavo antes que ela pergunte para qual andar gostaria de ir.

– Arranquei um dente.
– É verdade, o seu lado esquerdo tá meio inchado.
– E dói.
– Imagino... qual é o seu apartamento?
– Por quê?
– Curiosidade.
The curiosity killed the cat...
– O quê?
– É um ditado inglês.
– Você mora com quem?
– Papai e mamãe.
– Tem namorado?
– A esperança é a última que morre.
– É um ditado inglês também?
– Chegou.
– O quê?
– O meu andar.
– Ah, é...

Laura sai, acena e sorri. Ele acompanha hipnotizado o rastro de seu perfume e o movimento daquele belo par de substanciosas coxas pelo corredor afora.

– Eu te amo! – cochicha para si.

Depois viaja pacientemente até o oitavo andar e aperta o "térreo" para voltar à portaria. Sai do elevador e do prédio, ganhando a rua, olhando de um lado para outro, à procura de um ponto de ônibus.