17/08/2022

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL


Entrou em casa cambaleando, já com o dia amanhecido. Abriu a geladeira e serviu-se de mais uma latinha. Procurou pelo controle remoto e o encontrou ao lado da foto em que a ex-esposa segurava o filho no colo. Ainda não entendia por que estava proibido de se aproximar de ambos, pois considerava que os catiripapos na mulher e o safanão na criança tinham sido apenas reflexo da desclassificação do seu clube da Copa do Brasil. Mas não pretendia lembrar disso agora, então ligou a TV no canal de esportes, ao mesmo tempo em que perguntou no grupo qual era o horário do jogo.

E era um desses jogos das onze da manhã, pelo Brasileirão. O time para o qual torcia ocupava o quarto lugar na tabela. Vencendo, pularia para a vice-liderança; perdendo, a depender de outros resultados, poderia até cair fora da zona de classificação à Sul-Americana. "Nos nossos domínios, contra esses fracassados, são três pontos garantidos", pensou.

Faltando meia hora para o início da partida, decidiu que não se apresentaria à delegacia móvel do estádio, afinal, não poder ir ao campo somente por ter jogado uma bomba caseira na direção da torcida adversária, era uma punição injusta e desproporcional. Aproveitou a espera para acessar uma de suas redes sociais e publicar ofensas e ameaças à equipe rival. Depois, ao conferir as escalações, fez também uma postagem chamando o técnico de burro.

Logo no pontapé inicial, após enxugar mais algumas cervejas diante da TV, celular em punho, usou a hashtag da emissora para demonstrar seu descontentamento com o narrador, que torcia contra; e com o comentarista, que não entendia de futebol, além de ser claramente gay e comunista. Ao árbitro do jogo, que não marcara um pênalti no primeiro lance de perigo, em vez de texto, a indignação veio em voz alta:

– Só podia ser esse crioulo ladrão!

No intervalo, à repórter de campo, que usava máscara e mantinha distância ao entrevistar os jogadores, questionou retoricamente:

– Ué, não tomou vacina? Pra que essa máscara, vadia?

Decorridos alguns minutos do segundo período, os dois elencos pouco produziam. E ele, tendo passado a noite em claro, acabou cochilando ali mesmo, no sofá da sala. Despertou já nos acréscimos, assustado com um grito de gol do narrador inimigo. O apito final soou em seguida, confirmando a derrota dos locais pelo placar mínimo.

O torcedor solitário esfregou os olhos. Tomou um último gole de bebida quente, ao mesmo tempo em que perguntou no grupo se estava de pé a tocaia que haviam preparado para o ônibus dos visitantes. Só não lembrava é se tinham combinado no entorno do estádio ou na saída da cidade. Antes de guardar o soco-inglês no bolso do moletom, virou-se para o dispositivo de inteligência artificial e ordenou:

– Alícia, toque o hino do meu time de coração!

Como sempre, o robô-aspirador nada respondeu, e continuou a faxinar o chão imundo.

04/08/2022

O TAPETE VOADOR


Quem mora em edifício sabe bem do que vou falar.

Geralmente, é pela área de serviço que escutamos os sons mais estranhos e as conversas mais bizarras, vindas dos apartamentos vizinhos. Sei lá, deve ser por causa da conformação arquitetônica, mas o fato é que qualquer coisa que se cochiche parece propagada por todo o prédio, amplificada dez vezes, o que equivale a publicar nossos segredos na pauta da reunião de condomínio.

Pois eu acabara de dar comida aos meus gatos quando reconheci a voz do morador do andar de cima, aparentemente falando sozinho. Depois me toquei que ele estava ao interfone (já que ninguém respondia) e, sem grandes alterações no tom de voz, dizia mais ou menos assim:

Alô! É do novecentos e três? Quem fala? Cremilda? Ah, Cremildes... bom dia, dona Cremildes, aqui é o seu vizinho do setecentos e três, o Ademar, tudo bem com a senhora? (...) Eu sei que a senhora está fazendo o almoço, mas é assunto rápido, é sobre o seu tapete... (...) Como que tapete? A senhora não tem um tapete de pele de urso? (...) Pois é, este seu tapete, que a senhora provavelmente estendeu na janela para pegar um solzinho, acabou de voar janela abaixo e caiu lá no playground. (...) É, no playground. (...) Eu sei que a senhora vai mandar a faxineira buscar, só que o problema é um pouquinho mais grave: é que, na passagem, o seu tapete derrubou a minha bochecha-de-velho. (...) Cirurgia plástica? Não, dona Cremildes, eu não sou velho nem bochechudo, me refiro à salacia polyanthomaniaca, que é uma planta ornamental da família das hipocrateáceas, popularmente chamada de bochecha-de-velho. (...) Isso mesmo, a pobre plantinha se estabacou lá embaixo junto com um vaso de porcelana de vinte e dois centímetros de altura por dezoito de diâmetro. (...) Tudo bem que foi a faxineira quem colocou o tapete na janela, mas a 2 senhora é dona do tapete e dona da faxineira, se é que faxineira tem dono. (...) Como e daí? Eu acabei de perder uma planta e um vaso por causa do seu tapete. (...) Quem é que está queimando? Ah, o feijão... (...) A planta custa quarenta e oito reais e o vaso doze... sessentinha! (...) Não vai pagar? Como não vai pagar? (...) Tudo bem, dona Cremildes, então eu fico com o seu tapete de pele de urso até segunda ordem, combinado? Passar bem!

Na sequência, ouvi a batida do interfone no gancho, uma porta se abrindo e, segundos depois, ecos na escadaria do prédio, de passadas nervosas, em direção ao playground. Lá embaixo, preso na gangorra, um cafona, porém valioso, tapete de pele de urso.