10/11/2020

CRÔNICA ESFARRAPADA


Sempre achei que fosse folclore essa história de que os escritores, de vez em quando, têm um bloqueio criativo e não conseguem produzir nada. Pois aconteceu comigo pela primeira vez: a síndrome da página em branco. Ou melhor, da tela do Word em branco. Já estou há horas na frente do computador tentando ter uma ideia, encontrar um assunto, divagar em cima de alguma fofoca, lembrar de coisas engraçadas (reais ou imaginárias) e nada. Nem um titulozinho fui capaz de inventar para servir de ponto de partida.

Logo o prazo de fechamento da coluna vai se esgotar e, caso o lado direito do meu cérebro continue em greve, existe uma grande possibilidade de eu ficar desempregado antes do fim do ano. Pensei em fazer como o Rubem Braga fazia quando não sabia o que escrever, ele mandava o leitor se catar e pronto, sugeria que ocupassem o tempo com coisas mais úteis ou que fossem ler outros colunistas e o deixassem em paz. Só que o Rubem Braga era o maior de todos, podia tudo. Enquanto euzinho, um ilustre desconhecido, se tentasse coisa parecida, correria o risco de não ser mais lido nem pela própria família.

Fácil mesmo seria falar sobre as eleições nos Estados Unidos, sobre a cara permanente de cu com cãibra do presidente Trump, ainda mais contraída e apatetada após a acachapante derrota. No campo dos fracassos, tirar sarro do Flamengo não é uma opção que se possa descartar, visto que seus zagueiros medianos e seus laterais idosos talvez rendam uns parágrafos. Mas é que já tem tanta gente comentando de política e futebol – e parece que o mundo gira em torno disso – que eu acabaria me transformando em mais um chato sem inspiração, fazendo de conta que entendo de tudo, cagando-regras e proferindo bobagens, uma espécie de Galvão Bueno das letras.

Assim, sob pressão, sobram poucas opções. Advogados escrotos? O preço do óleo de soja? Quem sabe a pandemia resulte em algumas linhas, sobretudo por que as vacinas que pipocam aqui e acolá coloquem em xeque o limite da inépcia dos que governam. A implantação do Pix é outro tema atraente, porém, infelizmente, não tenho cacife para discorrer acerca de nenhum aspecto econômico ou tecnológico do sistema bancário brasileiro, a não ser que "pix", na minha época, era somente uma agulhada de injeção.

Tanta coisa mereceria ser dita numa crônica. Pena que eu não seja um iluminado, com o poder de controlar as palavras a qualquer momento, que nem o Zuenir Ventura, por exemplo. Aliás, dou graças ao Senhor por conseguir controlar pelo menos o meu esfíncter e, de vez em quando, cometer um texto engraçadinho. Pensando bem, é melhor não escrever nada do que bostear uma constantinice qualquer. Vovô sempre dizia: em boca fechada não entra mosquito. Amanhã converso com o editor, não há de me faltar inspiração para uma boa desculpa esfarrapada.

13/08/2020

LOGÍSTICA


Foi no meio do nada que o carro pifou. Não exatamente no meio do nada, mas em um lugar bem longe de casa, sem comércio nem residências, apenas com várias pistas de avenida, um acostamento, uma ciclovia e metros e metros quadrados de calçamento, grama e árvores. O painel interno, iluminado por causa dos faróis acesos àquela altura da noite, de repente se apagou inteiro, ainda com o veículo em movimento. Arregalei os olhos e procurei a pista da direita, até conseguir encostar com segurança. O motor 1.8 já não dava mais sinal de vida.

Fazia alguns dias que eu abastecera com sete reais e cinquenta centavos, portanto, não podia acreditar que a pane tivesse ocorrido por falta de gasolina. Como o rádio funcionava, concluí que o problema não estava na bateria. Vasculhei de ponta a ponta a gigantesca paisagem urbana e não avistei nenhum posto de combustíveis. Então peguei um pedaço de mangueira de gás e uma garrafa plástica (que sempre carrego no porta-malas) e me aproximei do automóvel mais antigo estacionado nas redondezas, um modelo do tempo em que os tanques de gasolina não tinham chave. Eu só precisava de meio litro para dar novamente a partida. Introduzi uma ponta da mangueira na abertura e suguei a outra extremidade com toda a força. Engoli praticamente todo o líquido e acabei por perder os sentidos ali mesmo, na escuridão do passeio público.

Mentira.

Liguei o alerta e me refiz do susto. Girei a chave mais algumas vezes, sem resultado. Saltei do carro e passei a andar em torno dele (eu penso melhor caminhando), tentando achar uma solução para o incidente. Não havia guardas por perto, nem da polícia militar nem da guarda municipal. O celular, assim como o combalido Kadett 1998, estava mortinho da silva. Somente um andarilho meio bebum me observava da calçada, com olhar curioso. Perguntei quanto cobraria para ajudar a empurrar o possante até em casa e, para minha surpresa, ele topou por módicos dez reais. Antes que o homem mudasse de ideia, destravei o volante, desengatei a marcha e dei o primeiro impulso para movimentar as rodas. Pois foi assim: eu do lado esquerdo, ajeitando a direção pela janela, e o meu assistente empurrando a traseira por dez intermináveis quilômetros.

Mentira.

Caralhos me mordam! Foi o que eu disse quando o carro parou. Já passava das nove horas da noite de um dia cansativo e chuvoso, daqueles que custam a chegar ao fim e sempre reservam alguma surpresa desagradável perto de acabar. Com o celular sem carga na bateria, o seguro vencido e nenhum telefone público nas redondezas, não tive dúvidas: levantei os vidros, tranquei as duas portas da lata velha e corri para o ponto. Peguei o primeiro ônibus que ia na direção do meu bairro. "Amanhã mando guinchar essa merda", ainda pensei antes de embarcar.

06/08/2020

LETRA & MÚSICA


Era um casal aficionado da MPB e do pop-rock nacional. Sentados frente a frente, na pequena mesa redonda de um barzinho com som ao vivo, conversavam pela última vez antes da separação.

– Sei que você fez os seus castelos e sonhou ser salva do dragão.
– Eu apenas queria que você soubesse que esta menina hoje é uma mulher.
– Eu quero é viver em paz! Por favor, me beije a boca...
– Se você não entende, não vê...
– Eu quis dizer, você não quis escutar.
– O que me importa essa tristeza em seu olhar?
– Não tem jeito mesmo, não tem dó no peito, não tem nem talvez.
– Não pense na separação... não despedace o coração...
That’s over, baby! Freud explica.
– Agora que faço eu da vida sem você?
– Não me procure mais... assim será melhor, meu bem.
– Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e sons.
– Desculpe o auê, eu não queria magoar você.
– Eu nem sonhava te amar desse jeito.
– A emoção acabou...
– O que é que há? O que é que tá se passando com essa cabeça?
– Nada, nada, nada, nada!
– Nunca se esqueça, nem um segundo, que eu tenho o amor maior do mundo.
– Bem que se quis, depois de tudo, ainda ser feliz.
– Nada mais vai me ferir, eu já me acostumei.
– É isso aí.
– Então vem cá, me dá sua língua...

Beijaram-se despudoradamente durante alguns minutos. O que ela imaginou ser uma reconciliação, para ele era uma despedida. Pediram mais dois chopes, uma porção de fritas e retomaram o diálogo.

– Desejo que você tenha a quem amar.
– Mas não quero deixá-lo na mão nem sozinho no escuro.
I don’t want to stay here, I wanna to go back to Bahia.
– Eu prefiro as curvas da estrada de Santos.
– Devia ter me importado menos com problemas pequenos...
– Eu vejo flores em você!
– Pra ser sincero, não espero de você mais do que educação.
– Prefiro ser essa metamorfose ambulante...
– Eu tô voltando pra casa.
– Decida o que é bom pra você.
– Ah, mas o que você espera de mim...
– Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu.


Gabarito: Marina Lima (Erasmo Carlos), Gonzaguinha, Djavan, Kiko Zambianchi, Paralamas do Sucesso, Tim Maia (Cury Heluy), Geraldo Azevedo, Gilberto Gil, Zé Ramalho, Fernando Mendes, Leno & Lilian, Lulu Santos, Rita Lee, Guilherme Arantes, Cazuza, Fábio Jr., Blitz, Roberto Carlos, Marisa Monte, Legião Urbana, Ana Carolina & Seu Jorge, Seu Jorge, Frejat, Marina Lima, Paulo Diniz, Roberto Carlos, Titãs, Ira!, Engenheiros do Hawaii, Raul Seixas, Lulu Santos, Zélia Duncan, Raul Seixas, Chico Buarque.

LETRA & MÚSICA (2) – LEIA AQUI

16/07/2020

FICUS BENJAMINA


Subiu na figueira e não descia de jeito nenhum. Desde que a construtora descumprira o acordo de preservar as árvores e demolir apenas o sobrado, ele estava acorrentado aos galhos mais altos. Do pouco que havia no terreno onde nasceu, não ligava tanto para a casa. Sua grande paixão era a centenária figueira, onde costumava se refugiar depois das aulas na escolinha do bairro. Tratou de arranjar uma corrente e um cadeado assim que viu metade do pomar destruído pelas máquinas, e não teve dificuldade para subir a quase cinco metros de altura. Exigia uma intervenção judicial que garantisse o cumprimento do contrato.

Um pequeno grupo de curiosos e dois ou três fotógrafos da imprensa escrita já ocupavam parte da calçada do outro lado da rua. A família, também presente, reduzida a um irmão e à esposa, não compartilhava do mesmo sentimento pela causa. Os operários da obra paralisaram as atividades e aguardavam instruções do advogado da empresa.

Durante os três dias em que estava ali, alimentou-se de algumas balas que trouxera nos bolsos e bebeu água da chuva. Não queria conversa nem aceitava ajuda. Pensava nos melhores momentos de sua infância, no quanto tinha sido lindo aquele lugar e no balanço que o avô construíra para ele, pouco abaixo do galho em que agora se encontrava.


Pensou também no restante da cidade, absolutamente tomada por fábricas e edifícios. Carregava a impressão de que a figueira era o único pedaço de natureza sobrevivente, solitária como ele, na imensidão da selva de pedra. Lembrou dos milhares de pinguins mortos no litoral catarinense devido a um vazamento de óleo no mar e da devastação de metade da Floresta Amazônica em território mato-grossense para beneficiar plantadores de soja. Sentiu um súbito desânimo, muito maior que o cansaço pela posição incômoda no alto da árvore.

Perto da meia-noite, notou que a rua estava vazia. O vigilante da construtora fazia sua ronda do outro lado do terreno. Ele abriu o cadeado, soltou a corrente e desceu da velha figueira. Silenciosamente, caminhou pelas sombras até tomar o rumo de casa. Preferiu desistir antes que o considerassem louco. Não podia mesmo fazer mais nada.

07/07/2020

MUNDANA


– Já vou indo – ele diz, abotoando nervosamente a braguilha.
– Pode ficar se quiser.
– Não, não posso.

Levanto para levá-lo até a porta. Sinto a porra ainda quente me escorrer por entre as pernas. Visto o robe e esfrego uma coxa na outra enquanto caminho. O velho me estende duas notas de cem.

– Toma aqui.
– Não tenho troco.
– Não faz mal, semana que vem eu desconto.
– Tá.

Ofereço o rosto para um beijo, mas ele não entende. Me dá apenas um tapinha nas costas enquanto roça sua enorme barriga na minha cintura. Desaparece no fim do corredor. Fecho a porta, o telefone toca.

– Alô.
– Quem fala?
– Madre Teresa.
– Oi, gostosa!
– Vendeu as fotos?
– Vendi.
– Não acredito! Pros japoneses?
– É... e eles querem mais.
– De que tipo?
– Aquelas com a tua amiga, como é mesmo o nome?
– Marcinha.
– Isso mesmo.
– Me traz a grana hoje à noite que a gente combina.
– Só se tiver trepada.
– Nem pensar.
– Boquete?
– Não.
– Punhetinha!
– Fechado.

É o preço da eficiência. Desligo aliviada. Corro para o banheiro, nua pelo apartamento. Talvez um bom banho me lave a alma. Deixo a água correr no ar e depois pelo corpo. Esqueço um pouco do mundo lá fora.

Ao fechar o chuveiro, sinto frio, um arrepio que congela os ossos. Enxugo cabeça, tronco e membros. Quando finalmente paro em frente ao espelho, percebo as marcas dos dentes do velho nos meus peitos. Filho da puta! Procuro o pan-cake na gaveta, disfarço o que posso.

Visto minha melhor roupa de passeio, faço uma maquiagem discreta e não fico satisfeita. Só nascendo de novo, então. Saio pela garagem, atrasada, tentando me equilibrar no salto um tanto alto. Ela já me espera do outro lado da rua.

O carro não é o mesmo, mas é maior e mais bonito que o da última vez. Sorri quando me vê.

– Oi – cumprimento.
– Quinze minutos atrasada.
– Desculpa... vamos lá?
– Sinceramente, hoje eu só queria companhia.
– Sem problemas.

Entro no carro e sinto seu perfume.

– Vamos ao cinema?
– Vamos.

Ela abre a bolsa, tira um maço de cigarros e uma nota de cem.

– Toma...
– Não precisa.
– É pelo tempo perdido.

Aceito a nota. Ela acende um cigarro e dá uma tragada longa. Solta a fumaça pela janela e atira o cigarro na calçada. Nada entendo. Guardo meu dinheiro, já com o automóvel em movimento. Passo suavemente a mão em seus joelhos, em sua coxas, em sua barriga. Levanto sua saia e invado o delicado vale entre suas pernas. Sinto a umidade e o calor.

– Hoje não, por favor...
– Tudo bem.

Sei que não iremos a nenhum cinema. Rodamos sem parar, durante quase uma hora, pela cidade cinzenta e vazia. O céu escurece rápido, então peço a ela que me deixe no endereço – impossível de ser pronunciado – que mostro anotado em um guardanapo. Rimos juntas uma última vez.

Quando o carro para em frente à casinha verde, me despeço com dois beijos, um no rosto, outro na boca. Ela fica de ligar na próxima semana, o que consinto com um movimento de cabeça. Nem amor nem dor, apenas a sensação de dever cumprido.

Entro pelo portãozinho enferrujado e toco a campainha. Ouço passos do lado de dentro. Ele abre a porta, de pijama, um pouco despenteado, cara de sono.

– Oi, mulher!
– Não sou mais sua mulher, esqueceu?
– Pra mim é como se fosse...
– As crianças?
– Na escola.

Abro minha bolsa e tiro o bolo de notas que nem tive tempo de contar.

– Vim trazer o dinheiro.
– Ainda tem do mês passado.
– Não faz mal, compra alguma coisa pra você.
– Quer entrar? Acabei de passar um café.
– Não, não, tenho que ir.
– Tá.

Viro as costas e saio apressada pela rua sem calçamento. Noto um fio puxado na meia fina. Merda! Ajeito a calcinha que vai entrando na bunda. Chamo um táxi e relaxo um pouco. Tento lembrar de cabeça o número do telefone da minha amiga Marcinha.

27/06/2020

LE PASTICHE


Aconteceu na vizinhança, durante a minha meninice. Na casa ao lado, morava uma senhora chamada Cleunice. Tinha duas filhas: Beatriz e Berenice. A primeira, mais nova, muito feinha, quase não saía de casa, e era raro que alguém a visse. Já a mais velha, um azougue, desfilava pelo bairro, como se fosse uma misse. Não chegaram a conhecer o pai, vítima de parada cardíaca, bem no meio de um jogo de boliche.

Esqueçamos a pequena, pois não há tempo para disse me disse. A outra é que nos interessa, ainda que pareça tolice. Quando completou dezoito anos, começou a sonhar com o príncipe encantado ou com qualquer um que lhe sorrisse. Não tardou a ser correspondida, tamanha a sua brejeirice. Correu para contar à caçula, que desdenhou de tais sentimentos resmungando apenas: "Que enorme babaquice".

O pretendente era rico e bonito, recém-chegado de Nice. Gostava de jazz, de vinhos caros e das obras de Matisse. Apaixonara-se, desde o primeiro olhar, pela formosa Berenice. Decidiu que investiria nela, pois seus namoros anteriores tinham sido uma mesmice. Mandou flores, escreveu bilhetes, fez até serenatas, o que ela considerou criancice. Ele não se importou, ia conquistá-la ou não se chamava Maurice.

Mas nenhum esforço extra se fez necessário para que o destino os unisse. Eram praticamente duas fatias de pão de um mesmo sanduíche. Na tarde em que consentiu no casamento, lágrimas rolaram dos olhos de dona Cleunice. A noiva, que esnobara tantos pretendentes, só queria saber de passar a lua de mel em Garmisch. Agora não precisava mais procurar, e lutar contra a paixão seria, no mínimo, sandice.

Organizar a cerimônia foi uma chatice. As famílias optaram por poucas flores e vetaram músicas com tendência à pieguice. Beatriz presenteou a irmã com uma calcinha azul, e logo avisou que era para dar sorte, antes que a outra reagisse. O presente foi direto para o lixo, já que sorte maior não poderia haver, nem que um anjo do céu caísse. Escolheu uma lingerie da cor do vestido, desconsiderando qualquer crendice.

Vieram parentes distantes, assim que receberam o convite, tanto os jovens quanto os que beiravam a velhice. Uma foto dos nubentes foi parar na coluna social, como era de praxe: o cúmulo da breguice. Naquele mês de maio, vendo a igreja lotada, a mãe agradeceu, com uma fé tão grande que não havia quem medisse. Enquanto o noivo não cansava de repetir à sua amada: je t’aime ou ich liebe dich.

Caminhou sozinha até o altar a bela Berenice. Concentrou-se na imagem do elegante príncipe encantado, apesar de sentir a calcinha branca apertando, contendo-se para não cometer nenhuma macaquice. Ao seu encontro veio o futuro esposo, com um sorriso de ofuscante branquice. Escorregou no primeiro degrau, bateu a cabeça e morreu na hora, pobre Maurice. O padre, que era nordestino, exclamou incrédulo: "Vixe".

05/06/2020

UMA CRÔNICA DE SONHO


Garanto a vocês: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. A certa altura da noite, no quinto estágio do sono, nenhum especialista seria capaz de explicar como, de súbito, surge o sorriso maroto no rosto do paciente que estava dormindo seriamente até poucos minutos atrás, abarrotado de eletrodos pelo corpo. É por que o pobre especialista, obviamente, nunca sonhou com a mulher da sua vida.

Fascinante é visualizar nossa musa em imagens desconexas ou lógicas, em tecnicolor ou em preto e branco, tanto faz. Além de carregá-la na memória durante todo o dia, sonhar com seu sorriso, com seu olhar, com suas curvas, é como se fosse um complemento à falta que ela nos faz. Até num cochilo rápido após as refeições ela pode surgir, inesperadamente, doce como uma sobremesa.

Gostoso é sonhar que se está dirigindo sem destino com o nosso amor ao lado, no banco do carona, e que, em sonho, ela não liga para as nossas barbeiragens; é ouvir a campainha fora de hora, abrir uma porta imaginária e dar de cara com a sua pequena trazendo um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate que ela fez especialmente para o seu café da manhã hipercalórico.

Sensacional é sentir, no meio da noite, o próprio metabolismo corporal voltar a acelerar quando a mulher amada aparece trajando aquela blusinha justa, de um ombro só (que você considera vulgar e excitante ao mesmo tempo), já que na vida real ela não tem coragem de usar; é ter consciência de se estar inconsciente e tentar manter a concentração para que o sonho jamais chegue ao fim.

Femme Nue Couchée (Pablo Picasso, 1936)

Maravilhoso é realizar, ao menos dormindo, todos os desejos econômicos, emocionais, sexuais e gastronômicos de sua grande paixão; é sonhar que se está passeando de mãos dadas pela Champs Élysées num minuto e comendo um sanduíche de carne de segunda no sofá de casa no minuto seguinte, embora você mal conheça os países do Mercosul e ela seja vegetariana.

Supimpa é sonhar com um beijo roubado, ainda que, na realidade, o primeiro beijo em sua adorável parceira tenha sido cuidadosamente planejado (e executado com sucesso, ao que tudo indica); é continuar apaixonado, apesar de, em seus devaneios noturnos, ela às vezes ter apenas um olho, seis braços ou três peitos, sem que isso caracterize um pesadelo, muito pelo contrário.

Delicioso é rolar na cama, virtualmente abraçado em nossa musa inspiradora, num campo de girassóis pintado por Van Gogh; é vislumbrar o futuro com clareza e esquecer o passado nebuloso; é marcar um gol de bicicleta em final de campeonato ou subir ao palco e cantar Under My Skin com a voz do Frank Sinatra, tendo a certeza de que ela está na plateia prestigiando a sua falta de talento.

Pois reitero, então, caros amigos: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. E de nada adianta o especialista em distúrbios do sono tentar justificar qualquer anormalidade, pois bem sei que ele não sabe de nada, afinal, nunca sonhou com a mulher da sua vida. Melhor ainda é despertar de um sonho desses, ao amanhecer ou no meio da noite, tanto faz, cheio de cuidados para não acordá-la.

29/05/2020

MICÇÃO


Ela nunca tinha visto um homem mijando. Nem irmão nem pai nem primo nem ex-namorado; nem em revista nem no cinema nem na internet. Nunca, ele soube mais tarde. Então começou a entender por que, nas primeiras vezes em que saía da cama para ir ao banheiro após o sexo, ela ficava espionando pela fresta da porta, em silêncio, olhos brilhantes, fixos nos jatos amarelados que jorravam de seu pau lambuzado para a cerâmica branquinha.

No começo, ele achava estranho, ficava encabulado, às vezes nem conseguia mijar, mas fazia de conta que não percebia. Depois de um tempo, passou a deixar a porta escancarada. Ela ficava encostada no umbral, nua, descalça, observando todos os seus movimentos.

Aquela vigilância durante a madrugada, às vezes pela manhã, provocava nele um tesão improvável: partia mijando de pinto murcho e terminava em riste, respingando pelas paredes. Ela ria, e também se excitava com a comédia.

Quando ia para o banheiro, sabia que ela viria junto. Quando não vinha, ele esperava pacientemente, de pé, tampa do bacio levantada, bexiga cheia, aguardando seu tiro de largada com o olhar.

No segundo mês, ela passou a ficar mais perto, com a bunda apoiada no granito da pia, braços cruzados. Eventualmente se encaixava atrás dele, segurava seu pau e, na ponta dos pés, olhando por cima dos ombros, mirava com precisão até acertar na água da privada. Ele teve de ensiná-la que é melhor apontar para as laterais do vaso e deixar o líquido escorrer, senão, além do barulho e da espuma, acabam voando algumas gotas para o chão.

O ritual se repetia diariamente, quase sem palavras. Então voltavam para a cama ou iniciavam uma nova sessão ali mesmo, ela com as mãos espalmadas no azulejo, pernas afastadas, buceta encharcada como ele nunca vira igual. Nunca, ele soube mais tarde.

Até que se separaram, tão rápido quanto um jato de urina. Incompatibilidade fora da cama, divergências políticas ou religiosas, ninguém soube listar exatamente os motivos. Ela deixou de segui-lo ao banheiro, depois deixou de atender seus telefonemas, depois sumiu de sua vida. Não totalmente, na verdade. Ainda hoje, sempre que precisa mijar, ele sente seu olhar curioso por trás da porta entreaberta.

10/05/2020

ESPIRAL DO SILÊNCIO


Somos cinco na mesa de sempre, perto da janela, à esquerda da porta de entrada. As outras mesas da cantina também estão ocupadas. Os músicos deram uma pausa, as pessoas agora falam e riem um pouco mais baixo. Estamos na quinta rodada de vinho e polenta.

Meu amigo Júlio me aponta um homem no balcão do bar. Ana, Lúcio e Lígia viram-se para olhar.

– É aquele nojento do Gustavo! – diz Ana, franzindo as sobrancelhas.
– Eu até que gosto dele, sujeito bacana – pondera Lúcio.

Guga Menezes é artista plástico. Estudamos juntos, os seis, nos últimos anos do colegial. Ele foi muito famoso e ganhou algum dinheiro, hoje está pobre e é soropositivo. Aceno para que venha beber conosco.

Ana pede licença, levanta-se e vai ao banheiro. Lúcio e Lígia enchem suas bocas de polenta.

– Ora, ora... como vão os inseparáveis?
– Vi você no jornal um dia desses – eu digo.
– Ah, é... foi no sábado, me entrevistaram para saber de um argentino que pagou dez mil por uma escultura minha, nem acreditei.
– Caralhos me mordam! – exclama Júlio, sem se conter.

Guga nos conta que já não tem ânimo para o trabalho, mas que fará uma última exposição, de quadros e esculturas, no fim do próximo mês, no Museu de Arte. Convida a todos para o evento e se despede:

– Pois bem... não vou mais constranger os amigos com a minha presença, espero revê-los em breve.

O artista toma outro gole de vinho e volta ao bar, enquanto Ana retoma seu lugar à mesa.

– Onde é que você se meteu? – pergunto.
– Tava no banheiro.
– E mijou durante quinze minutos?
– Vai te foder, Júlio! – Ana se exaspera, aos prantos.

Entreolhamo-nos. Lígia incentiva:

– O que foi, querida? Fala pra gente...
– A culpa é minha! Podem me denunciar!
– Culpa de que, querida? Não estamos entendendo.
– Eu infectei ele... trepei com ele de propósito.

Os músicos voltam a tocar, ninguém ouve a voz de ninguém.

Meia hora depois, pagamos nossa conta e vestimos nossos casacos. Todos os lugares ainda estão ocupados, há uma fila de espera do lado de fora da cantina. Na calçada, nada de abraços. Cada um, em seu íntimo, sabe que nunca mais seremos cinco na mesa de sempre.

20/04/2020

O PASSAGEIRO (2)


O vidro do ônibus é uma poeira só. Ele suja a manga da camisa de flanela tentando limpar. Fica agoniado se não consegue olhar para fora, ver as pessoas na calçada, as lojas se fechando. Prepara-se para dar um esporro no cobrador antes de descer, não admite que deixem um vidro sujar assim. Salta e continua a pé.

Passa por um cara que voa por dentro de uma argola em chamas, com um monte de desocupados espiando em volta. Uns aplaudem, outros riem, mas não pagam um centavo pelo espetáculo. Tem também uma indiazinha que vende bichos de madeira, sempre no mesmo lugar, com um bebê no colo. Aposta como ela nunca vendeu nenhum bicho daqueles. Quando tiver algum dinheiro sobrando, vai ajudar comprando uma capivara ou uma onça-pintada.

Para em frente à padaria. O cheiro de pão fresquinho invade meio quarteirão, e ele sem um puto no bolso. Nem lembra mais o que comeu no almoço. Arroz, ovo frito e salada de tomate, talvez tenha sido isso. Deve haver no armário umas bolachas para molhar no café.

Dona Cassiana vem passando e lhe cobra o aluguel atrasado. Ele pergunta se ela não quer trocar por uma trepada mais tarde no quartinho. A coroa ri, não diz nem que sim nem que não. Treparam apenas uma vez, logo que foi morar na casa dela, antes de o marido morrer. Mulher peituda sempre foi seu fraco. Dona Cassiana até que é boa de cama, deixa fazer de tudo, menos meter atrás, diz que é contra as leis na natureza. Tudo bem, já se satisfaz se ela o deixa pegar nos peitos. Só tem de ser em silêncio, para a vizinhança não ficar sabendo.

A criançada deixa de jogar bola e pede para ver o seu Fender. Abre o estojo e mostra o instrumento importado. Avisa para ninguém encostar, não quer marca de dedo. Alguns não chegam perto porque têm medo. Na verdade, as mães é que têm medo e dizem para os filhos não chegarem perto do "marginal que mora na pensão da cafetina". Coisa que odeia é mulher que se faz de santa, dessas que dizem para os filhos não chegarem perto desse ou daquele.

Pensando com seus botões, conclui que é melhor botar medo do que sentir medo. O medo faz doer o estômago. O sujeito perde a fome, fica brocha, tem dor de cabeça, úlcera, vomita sem motivo, não dorme direito nunca mais na vida.

Agora é o cheiro de mofo que aumenta, sabe que está perto de casa. Pega a chave debaixo do assoalho. Tropeça no tapete antes de entrar. Esbraveja em voz alta. Acende o interruptor, fecha a porta e larga o contrabaixo num canto. Liga o televisor no telejornal da noite. Abre o chuveiro frio. Daqui a pouco a dona Cassiana aparece e ele precisa estar limpinho para ela chupá-lo sem nojo.

10/03/2020

O PASSAGEIRO


Todos buzinam ao mesmo tempo, o trânsito não anda. Ele salta do táxi, batendo a porta com força. Sai caminhando por entre os carros. O motorista xinga sem convicção. Ele faz de conta que não ouve. Não paga a corrida e o chofer continua íntegro.

Ajuda uma idosa a atravessar a rua. Ela não enxerga muito longe, e isso o comove. Parece bastante com sua avó, apenas um pouquinho mais corcunda. Nenhuma senhora faz bolinhos de chuva melhor do que a sua avó. Saudade dela e dos bolinhos. Quando a velhota chega ao outro lado, agradece a ajuda, pede a Deus que o abençoe. Não foi nada! Ela mal sabe que ele já é abençoado.

Anda um pouco mais rápido. Queria parar para rezar, mas precisa chegar ao ensaio e está atrasado. Pensando bem, não precisa chegar em lugar nenhum. Os caras que esperem, pois se ele não chegar, ninguém toca. Não existe banda de rock sem baixista. Diminui o passo e vai arquitetando um nome para o grupo. Também não existe banda sem nome. O Rinaldo sugeriu chamar de Clitóris Intumescido. Ele não acha ruim, entretanto, prefere arranjar coisa pior.

Reza baixinho pelo caminho, inventando uma oração. Toda vez que passa sobre o viaduto da igreja sente uma vontade louca de se jogar.

A porta da garagem está aberta. Ouve o barulho dos instrumentos desafinados lá dentro. Rinaldo reclama do atraso e ele responde: Vai tomar no cu! Pega de volta o Fender e sai. Não quer tocar numa banda sem nome, tem mais o que fazer da vida. Ninguém contesta.


Agora chuta uma latinha de refrigerante pela rua. Faz um esporro danado, as pessoas ficam olhando para ele. O baixo parece de chumbo, faz doer seu braço. Sempre quis tocar numa banda de rock, mas com caras legais, tipo o Nasi e o Scandurra, não com umas bichonas feito o Rinaldo e os primos dele.

Planeja ir para casa pensar. Só consegue pensar em casa, de banho tomado e barriga cheia. Imagina que deve haver um monte de bandas de rock precisando de baixista, ainda mais um que tenha um Fender bonito e caro que nem o dele, modelo precision bass, pesado que nem chumbo, que faz doer o braço.

Senta num ponto de ônibus com o estojo no colo. Mora na casa do caralho, nem sabe se passa a sua linha por ali, está acostumado a voltar de carona com o Rinaldo. Ao lado, um casal se beija. Pode ouvir até o barulhinho da saliva passando de uma língua para a outra. Não consegue deixar de olhar. O rapaz é preto e a guria é branca. Dizem que preto é mais bem-dotado, vai ver por isso ela o escolheu. O pau entra pela buceta e vai até o estômago.

Ele escuta os dois falarem em casamento. Acabarão casando mesmo, vão se encher de filhos, acompanhar novela da Globo, cagar de porta aberta. E não há nada pior do que cagar de porta aberta! Só novela da Globo, filosofa silenciosamente.

Quando o ônibus chega, tem sono e fome. Daria qualquer coisa por um pão com mortadela. Escora-se na janela e põe o contrabaixo no banco que sobrou. Não quer ninguém sentando perto. A cidade vai ficando azulada, mas ele cochila antes de reparar nisso.

03/03/2020

BLIND DATE


O problema é que a moça tinha dois queixos. Depois da primeira impressão, todo o resto parecia perfeito: roupas discretas, bolsa de couro natural, cabeça proporcional ao corpo, pele bem tratada, olhos claros muito grandes, dentes no lugar, sorriso bonito, orelhas pequenas, voz suave, narizinho arrebitado, unhas bem-feitas. Mas havia esse detalhe, do qual ele não conseguia desviar a atenção.

Aprendera em aulas de etiqueta que, ao conversar com qualquer pessoa, deve-se sempre fixar o olhar na região nasal, mais ou menos na altura das maçãs do rosto. No entanto, no caso de sua interlocutora, a tarefa parecia impossível. Abaixo da boca vinha o queixo e, em seguida, uma enorme papada, que ocupava o espaço onde deveria estar o pescoço e se estendia até o Bósforo de Almasy.

A conversa seguia agradável. Tinham gostos parecidos para música, cinema e literatura, trabalhavam em áreas afins, moravam em bairros vizinhos e, em épocas diferentes, estudaram no mesmo colégio. Vasculhando as árvores genealógicas, descobriram inclusive um parente comum nas gerações passadas. Porém, apesar de tantas coincidências, ela possuía dois queixos e ele, por sorte, apenas um.

Quando ela pediu licença para ir ao banheiro, ele aproveitou para reparar nos outros atributos de sua acompanhante. Tentava encontrar uma explicação para o único defeito que percebera até o momento. Talvez fosse uma gordinha que emagreceu, daí a sobra de pele na região. Contudo, o que viu foi um andar gracioso, uma bundinha firme e empinada, numa silhueta absolutamente esbelta.

Tarde da noite, ele pagou a conta, ainda sem saber se gostaria de encontrá-la novamente. Caminharam lado a lado até o estacionamento. Assim, de perfil, sob a luz da Lua, os dois queixos pareciam muito mais assustadores do que de frente, iluminados artificialmente no interior do bar. Ela abriu a bolsa, puxou um cigarro e perguntou se ele tinha fogo. Aliviado, respondeu sorrindo:

– Desculpe, eu não me relaciono com fumantes em hipótese alguma.

25/02/2020

FOLIA & CINZAS


Eu não gosto nadinha de Carnaval. Que me desculpem aqueles que gostam, mas essas festas populares, com muita gente alegre reunida, onde ninguém é de ninguém e o aumento da taxa de natalidade no mês de novembro é recorde, na verdade, me deixam até um pouco deprimido. Pelo menos o feriadão é longo e, acabada a folia, da quarta-feira de cinzas em diante, surgem ótimas histórias para se contar ou para se esquecer, dependendo de qual lado da trama você faz parte. Eu não faço parte de trama nenhuma, obviamente, visto que o meu desfile no bloco Acadêmicos do Ortobom não foi dos mais emocionantes e ainda estourou o tempo.

Falando em histórias, lembrei de uma boa: um conhecido de infância (hoje dono de bistrô), grande, gordo, peludo, cismou de sair vestido de odalisca, com uma fantasia toda feita de papel crepom vermelho. No sábado à tarde, na Praça XV, caiu uma chuva torrencial e a roupa derreteu inteirinha, deixando o jovem culinarista apenas de sunga, todo escarlate do pescoço para baixo, que nem chiclete de criança com anilina quando mancha a língua.

Tem também a da mocinha que, mesmo não gostando de Carnaval, aceitou ir com as amigas ao baile do Clube 12. Dormiu das duas da madrugada às seis da manhã no confortável sofá do banheiro feminino. A mesma dublê de foliã, um pitéu aos dezoito anos de idade (hoje psicóloga de renome), desferiu um mae-geri no estômago de um Batman que lhe passou a mão nas nádegas. Ficou lá o "super-herói", estatelado no salão, sem nada poder fazer contra as aulas de caratê que ela vinha tomando há mais de seis meses.

Mas a melhor dessas passagens momescas é a da filha da dona Glorinha, a Maria de Lurdes, que juntou todas as economias e foi para o Rio de Janeiro fazer um curso de esteticista. Um dia, telefonou e avisou à mãe que ia ser destaque no abre-alas da Unidos da União do Império Imperial, uma escola de samba do segundo grupo.

Dona Glorinha, viúva há doze anos, religiosa, muito querida na vizinhança, espalhou a notícia por todo o bairro e, na noite de sexta-feira, reuniu mais de quarenta pessoas, entre amigos, parentes e curiosos, frente ao seu televisor para acompanhar o desfile. Em pleno sambódromo, no alto do primeiro carro, surgiu a Lurdinha, filmada de vários ângulos por oito câmeras diferentes, com nome e sobrenome na legenda lidos em voz alta pelo locutor da emissora, totalmente nua, peladinha da silva, só com um montinho de purpurina pouco abaixo do umbigo. Na sala lotada, ninguém ousou abrir a boca, muito menos a dona Glorinha. O infarto foi fulminante.