27/11/2018

TRÊSCRÔNICASCOLADAS


De manhã cedo, o beijo no rosto. "Tá na hora, meu nego... vai trabalhar, vai." Irene sai apressada e negro Inácio vira-se na cama, cheio de amor no coração. Ainda dá uma afofada no travesseiro antes de voltar a dormir. Lá fora, ela desliza suave morro abaixo. Cadeiras pra lá, cadeiras pra cá, sorrindo aos que só vão descer a ladeira mais tarde. "Bom dia, dona Carminha!" "Bom dia, Irene! Como é que vai o Inácio?" Logo adiante: "Sai pra lá, menino traquinas!" "Desculpa, dona Irene, foi sem querer..." E segue seu caminho de todos os dias. A primeira a sair, a última a chegar, com a disposição e a beleza que Deus lhe deu, os dentes abre-alas muito brancos. No pé do morro, a avenida. Irene toma o ônibus. Quarenta minutos de viagem até a casa do prefeito. Eita, mulata importante: dona da cozinha e a quem os dois filhos de madame Elvira, a primeira-dama, chamam de mãe. Estaciona o lotação. "Vai saltar, seu cobrador, vai saltar!" Desembarca Irene, meiga, distraída em manhã de sol. A cabeça no meio-fio.

Foi abordado por uma cigana na principal praça da cidade. Com carregado sotaque paraguaio, exalando discreto bafo de cachaça, a mulher 
– já de uma certa idade – pediu a ele uma nota de dez reais, justificando que em papel-moeda a sorte se apresentava mais claramente, e que ela não ficaria com o dinheiro, apenas o usaria como instrumento de trabalho. Em grave crise profissional e amorosa, abriu a carteira e ofereceu uma cédula para o sacrifício. A velha zíngara respirou fundo, puxou todo o ar que conseguiu e, num frêmito expectorante, rosnando alto, cuspiu na nota novinha, recentemente saída do caixa eletrônico. Com a ponta dos dedos, remexeu o catarro disforme e volumoso, até desenhar uma rosa-dos-ventos. Durante cinco minutos, a enrugada vidente falou do passado e do futuro, sem que seu cliente prestasse atenção a nenhuma palavra, devido a um embrulho no estômago, seguido de leve tontura. Chegado o fim da consulta, a escatológica senhora devolveu o dinheiro, como havia prometido. Ele segurou a nota – agora úmida e fedorenta – por uma das pontas e seguiu atordoado, cambaleando rumo ao interior da praça. Ao longe, pouco antes de vomitar no canteiro de amores-perfeitos, ainda pode ouvir a voz esganiçada da matusalênica cigana, que dizia impropérios e lhe rogava pragas num idioma muito suspeito.

Chico Peixeiro, pacato cidadão de Miracema do Norte, gastara com gosto todo o décimo terceiro salário no único meretrício do município. Tarde da noite, bêbado feito um guaxinim e jogando futebol com uma bola imaginária, acabou dando uma topada no paralelepípedo da calçada de casa. "Caralho!" "Hehe, bem feito!", tirou sarro a patroa, empunhando um rolo de macarrão. "Vai-te à merda, coisa medonha!" Chico estava puto com uma sua teúda e manteúda, que trocara o segredo da fechadura da palhoça onde se encontravam, além de tê-lo trocado por um conhecido caminhoneiro chamado Arlindo Orlando. "Quem manda eu me meter com fã de música baiana", pensou alto. Quando ia entrando pelo portão, já imaginando a cama quentinha, foi recebido pela esposa com uma traulitada no meio da testa. Caiu por cima das flores do jardim, as mesmas que plantaram juntos logo depois da lua de mel. O sangue espirrou até em suas alpargatas novinhas. Não muito distante dali, os agentes Carmichael e Inojoza nada notaram.
  

13/10/2018

DIAS DE CRIANÇA


Crianças não são o meu assunto predileto. No entanto, são elas que rendem as melhores e mais inusitadas histórias. Com um pouco de sorte, rendem até três boas histórias no mesmo dia: uma pela manhã, outra à tarde e mais uma no comecinho da noite.

1. Cinderela, displicente, tirava meleca do nariz; Branca de Neve, que chegara atrasada, tomava uma Fanta Uva direto da latinha; Chapeuzinho Vermelho, desprovida de vaidade, usava óculos de grau; mais ao fundo, um Zorro descabelado gritava para um Peter Pan obeso: "Larga essa bola, seu bastardo sem-vergonha".

Assim como você que está lendo este parágrafo, eu também achei que estava ficando maluco. Não eram nem oito horas da manhã e a molecada da escolinha do bairro (que fica no meu caminho para o trabalho) já estava alvoroçada, aguardando o início do primeiro baile à fantasia do ano. Coisa divertidíssima de se ver. De longe, claro.

Parece que "em novembro vai ter outro", ouvi a professora Sininho cochichar para a Bruxa Malvada, sua assistente. Informação relevante, pois da próxima vez não ficarei imaginando que alguém lá em casa pôs bebida no meu Nescauzinho logo cedo.

2. Fim de tarde. Saída da escolinha do bairro (que fica no meu caminho de volta para casa). Um simpático velhinho ia à minha frente pela calçada, de mãos dadas com seu neto, que não devia ter mais de seis ou sete anos e era pouca coisa maior do que a própria mochila. O ancião coruja, de cabelos totalmente brancos e andar vagaroso, fazia perguntas ao guri. Eu, curioso, ultrapassei os dois para tentar ouvir mais claramente o diálogo.

– O que foi que a professora ensinou hoje, Gustavinho?
– Prê-fi-qui-ssôs.
– Hein?
– Prefixos, vovô.
– Ah, prefixos...
– Isso, prefixos.
– Existem muitos prefixos, não é mesmo?
– Um montão, vovô! É uma coisa inacreditável, inexplicável e infinita.

3. À noite, depois de verificar a correspondência, corri para não perder o elevador. Do lado de dentro já estavam o zelador do prédio, o Vesgo – 
tem um olho sempre a boiar e outro que agita –, e sua estranha filhinha, uma criança loira (pouco mais nova que o Gustavinho), que ele acabara de buscar na escolinha do bairro.

Fazia meses que eu não encontrava o homem com a menina, então, em vez de falar sobre o clima ou sobre as horas, resolvi puxar uma conversa mais criativa para os padrões do condomínio.

– Nossa, como cresceu essa tua guria, hein?
– É, mais ou menos.
– Cresceu, sim, deu uma espichada boa...

Nisso, a pirralhinha me cutuca na altura da coxa e, quando olho para baixo, arremata seriamente:

– Deve ser porque eu estou calçando botas, o salto me deixa mais alta.

"Putz!", pensei com os meus botões. Era uma punição, um castigo, um tapa com luva de pelica em nome de todas as crianças que eu ignorei durante a vida inteira. E sobre as que ainda pretendo ignorar, nem tive tempo de imaginar quais lições elas me reservam. Fui saindo de fininho quando o elevador parou.