20/04/2020

O PASSAGEIRO (2)


O vidro do ônibus é uma poeira só. Ele suja a manga da camisa de flanela tentando limpar. Fica agoniado se não consegue olhar para fora, ver as pessoas na calçada, as lojas se fechando. Prepara-se para dar um esporro no cobrador antes de descer, não admite que deixem um vidro sujar assim. Salta e continua a pé.

Passa por um cara que voa por dentro de uma argola em chamas, com um monte de desocupados espiando em volta. Uns aplaudem, outros riem, mas não pagam um centavo pelo espetáculo. Tem também uma indiazinha que vende bichos de madeira, sempre no mesmo lugar, com um bebê no colo. Aposta como ela nunca vendeu nenhum bicho daqueles. Quando tiver algum dinheiro sobrando, vai ajudar comprando uma capivara ou uma onça-pintada.

Para em frente à padaria. O cheiro de pão fresquinho invade meio quarteirão, e ele sem um puto no bolso. Nem lembra mais o que comeu no almoço. Arroz, ovo frito e salada de tomate, talvez tenha sido isso. Deve haver no armário umas bolachas para molhar no café.

Dona Cassiana vem passando e lhe cobra o aluguel atrasado. Ele pergunta se ela não quer trocar por uma trepada mais tarde no quartinho. A coroa ri, não diz nem que sim nem que não. Treparam apenas uma vez, logo que foi morar na casa dela, antes de o marido morrer. Mulher peituda sempre foi seu fraco. Dona Cassiana até que é boa de cama, deixa fazer de tudo, menos meter atrás, diz que é contra as leis na natureza. Tudo bem, já se satisfaz se ela o deixa pegar nos peitos. Só tem de ser em silêncio, para a vizinhança não ficar sabendo.

A criançada deixa de jogar bola e pede para ver o seu Fender. Abre o estojo e mostra o instrumento importado. Avisa para ninguém encostar, não quer marca de dedo. Alguns não chegam perto porque têm medo. Na verdade, as mães é que têm medo e dizem para os filhos não chegarem perto do "marginal que mora na pensão da cafetina". Coisa que odeia é mulher que se faz de santa, dessas que dizem para os filhos não chegarem perto desse ou daquele.

Pensando com seus botões, conclui que é melhor botar medo do que sentir medo. O medo faz doer o estômago. O sujeito perde a fome, fica brocha, tem dor de cabeça, úlcera, vomita sem motivo, não dorme direito nunca mais na vida.

Agora é o cheiro de mofo que aumenta, sabe que está perto de casa. Pega a chave debaixo do assoalho. Tropeça no tapete antes de entrar. Esbraveja em voz alta. Acende o interruptor, fecha a porta e larga o contrabaixo num canto. Liga o televisor no telejornal da noite. Abre o chuveiro frio. Daqui a pouco a dona Cassiana aparece e ele precisa estar limpinho para ela chupá-lo sem nojo.