13/10/2018

DIAS DE CRIANÇA


Crianças não são o meu assunto predileto. No entanto, são elas que rendem as melhores e mais inusitadas histórias. Com um pouco de sorte, rendem até três boas histórias no mesmo dia: uma pela manhã, outra à tarde e mais uma no comecinho da noite.

1. Cinderela, displicente, tirava meleca do nariz; Branca de Neve, que chegara atrasada, tomava uma Fanta Uva direto da latinha; Chapeuzinho Vermelho, desprovida de vaidade, usava óculos de grau; mais ao fundo, um Zorro descabelado gritava para um Peter Pan obeso: "Larga essa bola, seu bastardo sem-vergonha".

Assim como você que está lendo este parágrafo, eu também achei que estava ficando maluco. Não eram nem oito horas da manhã e a molecada da escolinha do bairro (que fica no meu caminho para o trabalho) já estava alvoroçada, aguardando o início do primeiro baile à fantasia do ano. Coisa divertidíssima de se ver. De longe, claro.

Parece que "em novembro vai ter outro", ouvi a professora Sininho cochichar para a Bruxa Malvada, sua assistente. Informação relevante, pois da próxima vez não ficarei imaginando que alguém lá em casa pôs bebida no meu Nescauzinho logo cedo.

2. Fim de tarde. Saída da escolinha do bairro (que fica no meu caminho de volta para casa). Um simpático velhinho ia à minha frente pela calçada, de mãos dadas com seu neto, que não devia ter mais de seis ou sete anos e era pouca coisa maior do que a própria mochila. O ancião coruja, de cabelos totalmente brancos e andar vagaroso, fazia perguntas ao guri. Eu, curioso, ultrapassei os dois para tentar ouvir mais claramente o diálogo.

– O que foi que a professora ensinou hoje, Gustavinho?
– Prê-fi-qui-ssôs.
– Hein?
– Prefixos, vovô.
– Ah, prefixos...
– Isso, prefixos.
– Existem muitos prefixos, não é mesmo?
– Um montão, vovô! É uma coisa inacreditável, inexplicável e infinita.

3. À noite, depois de verificar a correspondência, corri para não perder o elevador. Do lado de dentro já estavam o zelador do prédio, o Vesgo – 
tem um olho sempre a boiar e outro que agita –, e sua estranha filhinha, uma criança loira (pouco mais nova que o Gustavinho), que ele acabara de buscar na escolinha do bairro.

Fazia meses que eu não encontrava o homem com a menina, então, em vez de falar sobre o clima ou sobre as horas, resolvi puxar uma conversa mais criativa para os padrões do condomínio.

– Nossa, como cresceu essa tua guria, hein?
– É, mais ou menos.
– Cresceu, sim, deu uma espichada boa...

Nisso, a pirralhinha me cutuca na altura da coxa e, quando olho para baixo, arremata seriamente:

– Deve ser porque eu estou calçando botas, o salto me deixa mais alta.

"Putz!", pensei com os meus botões. Era uma punição, um castigo, um tapa com luva de pelica em nome de todas as crianças que eu ignorei durante a vida inteira. E sobre as que ainda pretendo ignorar, nem tive tempo de imaginar quais lições elas me reservam. Fui saindo de fininho quando o elevador parou.