16/04/2024

SOLANGE SO LONELY


Já não era mais criança. Muito pelo contrário, acabara de completar trinta anos. E aos trinta anos, dizem, as meninas precisam fazer de conta que são mulheres. Solitária, sem parentes na cidade, desejava apenas não chegar aos quarenta sem ter se apaixonado.

Os homens, até então, entravam em sua vida e saíam dela como escovas de dente que precisam ser substituídas sempre que as cerdas se deformam. Talvez o olho esquerdo ligeiramente caído e a cicatriz no queixo fossem o seu charme, mas de nada adiantava ser diferente na aparência e absolutamente comum no intelecto. Suas limitações se revelavam rápido, depois de três ou quatro meses de relacionamento. Assim, descerrada a máscara, não tinha carisma nem criatividade para manter-se atraente.

Pouco seletiva, dava-se melhor com os negros, não entendia bem o motivo. Em estatísticas pessoais, considerava os morenos complicados, os ruivos insossos e os loiros uns pegajosos.

Não fumava. Entretanto, bebia todas as noites, mais sozinha do que acompanhada. E uma vez por semana, embriagada, ligava para o celular de algum ex-namorado. Tinha esperança de que um deles voltasse para ela, subitamente, durante um sábado vadio, mesmo que fosse apenas pelo sexo. Apesar da idade, não sabia exatamente a diferença entre simpatizar e gostar. Sabia somente que não amava ninguém. E que ninguém a amava.

Vez ou outra deixava cair as lentes de contato no ralo da pia. Chorava. Sorria muito mais raramente agora do que há dez anos, quando fugiu de casa para correr o mundo. Não correu. Na verdade, nunca havia saído do sul do país, mas pensava em viajar para Minas Gerais qualquer hora. Tivera sua única experiência homossexual com uma amiga de Santa Rita do Sapucaí. Não se arrependia.

Falava pouco, cada dia menos. Separava o lixo orgânico do reciclável. Lia a coluna do Contardo Calligaris e fazia análise. Frequentava bares para solteiros e adaptara-se bem à camisinha feminina.

Ultimamente, estava interessada no vizinho do andar de cima, com quem pegava o elevador quase todas as manhãs. Tinha tudo planejado, caso ele não correspondesse às suas investidas até o próximo fim de semana. Fecharia todas as janelas do apartamento e tomaria seus habituais sedativos, não sem antes ligar cuidadosamente o gás. Afinal, já não era mais criança.

04/03/2024

ACRILIC ON CANVAS


Não sei em que momento ela se mudou para o meu apartamento. Começou com uma trepada e um banho; depois uma trepada e um jantar; mais tarde, uma trepada e um cochilo; até acabar numa trepada, seguida de cochilo, banho, jantar, outra trepada e uma noite inteira de roncos, pernas nervosas, sono superficial e o sol entrando pela janela na manhã seguinte. Foi ficando.

Era estudante de Artes Plásticas. Além de roupas e maquiagem, trouxe cavalete, telas, pincéis, espátula, paleta, godê, solvente, carvão, grafite, verniz e tintas, muitas tintas, acrílicas e a óleo. Passaram a colorir minha vida pequena e lenta o branco de titânio, o azul-ultramar, o verde-oliva, o verde-ouro, o verde-oriental, o amarelo-ocre-claro-dourado, o terra de siena e o vermelho-veneza.

Tinha predileção pelos impressionistas: Degas, Manet, Monet, Sisley, Renoir, Pissarro. Passava os dias a reproduzir as pinturas mais famosas da segunda metade do século XIX, sempre atenta às incidências de luz e à falta de nitidez proposital em cada contorno, características daquele movimento. Dos brasileiros Visconti e Almeida Júnior, então, não lhe escapava um mínimo detalhe.

Valia-se da técnica do acrílico sobre tela, devido à secagem mais rápida, embora, eventualmente, se aventurasse pelo óleo sobre tela, que exigia a utilização de verniz de linhaça como secante ou diluidor e deixava o ambiente com um fedor semelhante ao de um gambá após uma aula de aeróbica. Mas eram transtornos menores e passageiros, pois assim que terminava seus trabalhos, em consideração ao nosso lar de dimensões reduzidas, levava os quadros para a casa dos pais. Segundo o porteiro do prédio, a mãe ou o pai ou ambos apareciam antes do fim da tarde, enquanto eu ainda estava no trabalho, portanto, nunca cheguei a conhecê-los.

Entre trepadas e pinceladas, seis meses se passaram. Também não sei em que momento cheguei ao apartamento e não a encontrei. Nenhuma tela, roupa, vestígio. Liguei a tevê e continuei procurando um bilhete ou qualquer outra pista de seu sumiço. No programa policial, uma quadrilha de falsificadores de obras de arte. Da direita para a esquerda, ela era a terceira. Uma pintura de tão linda.