27/06/2020

LE PASTICHE


Aconteceu na vizinhança, durante a minha meninice. Na casa ao lado, morava uma senhora chamada Cleunice. Tinha duas filhas: Beatriz e Berenice. A primeira, mais nova, muito feinha, quase não saía de casa, e era raro que alguém a visse. Já a mais velha, um azougue, desfilava pelo bairro, como se fosse uma misse. Não chegaram a conhecer o pai, vítima de parada cardíaca, bem no meio de um jogo de boliche.

Esqueçamos a pequena, pois não há tempo para disse me disse. A outra é que nos interessa, ainda que pareça tolice. Quando completou dezoito anos, começou a sonhar com o príncipe encantado ou com qualquer um que lhe sorrisse. Não tardou a ser correspondida, tamanha a sua brejeirice. Correu para contar à caçula, que desdenhou de tais sentimentos resmungando apenas: "Que enorme babaquice".

O pretendente era rico e bonito, recém-chegado de Nice. Gostava de jazz, de vinhos caros e das obras de Matisse. Apaixonara-se, desde o primeiro olhar, pela formosa Berenice. Decidiu que investiria nela, pois seus namoros anteriores tinham sido uma mesmice. Mandou flores, escreveu bilhetes, fez até serenatas, o que ela considerou criancice. Ele não se importou, ia conquistá-la ou não se chamava Maurice.

Mas nenhum esforço extra se fez necessário para que o destino os unisse. Eram praticamente duas fatias de pão de um mesmo sanduíche. Na tarde em que consentiu no casamento, lágrimas rolaram dos olhos de dona Cleunice. A noiva, que esnobara tantos pretendentes, só queria saber de passar a lua de mel em Garmisch. Agora não precisava mais procurar, e lutar contra a paixão seria, no mínimo, sandice.

Organizar a cerimônia foi uma chatice. As famílias optaram por poucas flores e vetaram músicas com tendência à pieguice. Beatriz presenteou a irmã com uma calcinha azul, e logo avisou que era para dar sorte, antes que a outra reagisse. O presente foi direto para o lixo, já que sorte maior não poderia haver, nem que um anjo do céu caísse. Escolheu uma lingerie da cor do vestido, desconsiderando qualquer crendice.

Vieram parentes distantes, assim que receberam o convite, tanto os jovens quanto os que beiravam a velhice. Uma foto dos nubentes foi parar na coluna social, como era de praxe: o cúmulo da breguice. Naquele mês de maio, vendo a igreja lotada, a mãe agradeceu, com uma fé tão grande que não havia quem medisse. Enquanto o noivo não cansava de repetir à sua amada: je t’aime ou ich liebe dich.

Caminhou sozinha até o altar a bela Berenice. Concentrou-se na imagem do elegante príncipe encantado, apesar de sentir a calcinha branca apertando, contendo-se para não cometer nenhuma macaquice. Ao seu encontro veio o futuro esposo, com um sorriso de ofuscante branquice. Escorregou no primeiro degrau, bateu a cabeça e morreu na hora, pobre Maurice. O padre, que era nordestino, exclamou incrédulo: "Vixe".

05/06/2020

UMA CRÔNICA DE SONHO


Garanto a vocês: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. A certa altura da noite, no quinto estágio do sono, nenhum especialista seria capaz de explicar como, de súbito, surge o sorriso maroto no rosto do paciente que estava dormindo seriamente até poucos minutos atrás, abarrotado de eletrodos pelo corpo. É por que o pobre especialista, obviamente, nunca sonhou com a mulher da sua vida.

Fascinante é visualizar nossa musa em imagens desconexas ou lógicas, em tecnicolor ou em preto e branco, tanto faz. Além de carregá-la na memória durante todo o dia, sonhar com seu sorriso, com seu olhar, com suas curvas, é como se fosse um complemento à falta que ela nos faz. Até num cochilo rápido após as refeições ela pode surgir, inesperadamente, doce como uma sobremesa.

Gostoso é sonhar que se está dirigindo sem destino com o nosso amor ao lado, no banco do carona, e que, em sonho, ela não liga para as nossas barbeiragens; é ouvir a campainha fora de hora, abrir uma porta imaginária e dar de cara com a sua pequena trazendo um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate que ela fez especialmente para o seu café da manhã hipercalórico.

Sensacional é sentir, no meio da noite, o próprio metabolismo corporal voltar a acelerar quando a mulher amada aparece trajando aquela blusinha justa, de um ombro só (que você considera vulgar e excitante ao mesmo tempo), já que na vida real ela não tem coragem de usar; é ter consciência de se estar inconsciente e tentar manter a concentração para que o sonho jamais chegue ao fim.

Femme Nue Couchée (Pablo Picasso, 1936)

Maravilhoso é realizar, ao menos dormindo, todos os desejos econômicos, emocionais, sexuais e gastronômicos de sua grande paixão; é sonhar que se está passeando de mãos dadas pela Champs Élysées num minuto e comendo um sanduíche de carne de segunda no sofá de casa no minuto seguinte, embora você mal conheça os países do Mercosul e ela seja vegetariana.

Supimpa é sonhar com um beijo roubado, ainda que, na realidade, o primeiro beijo em sua adorável parceira tenha sido cuidadosamente planejado (e executado com sucesso, ao que tudo indica); é continuar apaixonado, apesar de, em seus devaneios noturnos, ela às vezes ter apenas um olho, seis braços ou três peitos, sem que isso caracterize um pesadelo, muito pelo contrário.

Delicioso é rolar na cama, virtualmente abraçado em nossa musa inspiradora, num campo de girassóis pintado por Van Gogh; é vislumbrar o futuro com clareza e esquecer o passado nebuloso; é marcar um gol de bicicleta em final de campeonato ou subir ao palco e cantar Under My Skin com a voz do Frank Sinatra, tendo a certeza de que ela está na plateia prestigiando a sua falta de talento.

Pois reitero, então, caros amigos: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. E de nada adianta o especialista em distúrbios do sono tentar justificar qualquer anormalidade, pois bem sei que ele não sabe de nada, afinal, nunca sonhou com a mulher da sua vida. Melhor ainda é despertar de um sonho desses, ao amanhecer ou no meio da noite, tanto faz, cheio de cuidados para não acordá-la.