05/06/2020

UMA CRÔNICA DE SONHO


Garanto a vocês: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. A certa altura da noite, no quinto estágio do sono, nenhum especialista seria capaz de explicar como, de súbito, surge o sorriso maroto no rosto do paciente que estava dormindo seriamente até poucos minutos atrás, abarrotado de eletrodos pelo corpo. É por que o pobre especialista, obviamente, nunca sonhou com a mulher da sua vida.

Fascinante é visualizar nossa musa em imagens desconexas ou lógicas, em tecnicolor ou em preto e branco, tanto faz. Além de carregá-la na memória durante todo o dia, sonhar com seu sorriso, com seu olhar, com suas curvas, é como se fosse um complemento à falta que ela nos faz. Até num cochilo rápido após as refeições ela pode surgir, inesperadamente, doce como uma sobremesa.

Gostoso é sonhar que se está dirigindo sem destino com o nosso amor ao lado, no banco do carona, e que, em sonho, ela não liga para as nossas barbeiragens; é ouvir a campainha fora de hora, abrir uma porta imaginária e dar de cara com a sua pequena trazendo um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate que ela fez especialmente para o seu café da manhã hipercalórico.

Sensacional é sentir, no meio da noite, o próprio metabolismo corporal voltar a acelerar quando a mulher amada aparece trajando aquela blusinha justa, de um ombro só (que você considera vulgar e excitante ao mesmo tempo), já que na vida real ela não tem coragem de usar; é ter consciência de se estar inconsciente e tentar manter a concentração para que o sonho jamais chegue ao fim.

Femme Nue Couchée (Pablo Picasso, 1936)

Maravilhoso é realizar, ao menos dormindo, todos os desejos econômicos, emocionais, sexuais e gastronômicos de sua grande paixão; é sonhar que se está passeando de mãos dadas pela Champs Élysées num minuto e comendo um sanduíche de carne de segunda no sofá de casa no minuto seguinte, embora você mal conheça os países do Mercosul e ela seja vegetariana.

Supimpa é sonhar com um beijo roubado, ainda que, na realidade, o primeiro beijo em sua adorável parceira tenha sido cuidadosamente planejado (e executado com sucesso, ao que tudo indica); é continuar apaixonado, apesar de, em seus devaneios noturnos, ela às vezes ter apenas um olho, seis braços ou três peitos, sem que isso caracterize um pesadelo, muito pelo contrário.

Delicioso é rolar na cama, virtualmente abraçado em nossa musa inspiradora, num campo de girassóis pintado por Van Gogh; é vislumbrar o futuro com clareza e esquecer o passado nebuloso; é marcar um gol de bicicleta em final de campeonato ou subir ao palco e cantar Under My Skin com a voz do Frank Sinatra, tendo a certeza de que ela está na plateia prestigiando a sua falta de talento.

Pois reitero, então, caros amigos: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. E de nada adianta o especialista em distúrbios do sono tentar justificar qualquer anormalidade, pois bem sei que ele não sabe de nada, afinal, nunca sonhou com a mulher da sua vida. Melhor ainda é despertar de um sonho desses, ao amanhecer ou no meio da noite, tanto faz, cheio de cuidados para não acordá-la.

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