10/03/2020

O PASSAGEIRO


Todos buzinam ao mesmo tempo, o trânsito não anda. Ele salta do táxi, batendo a porta com força. Sai caminhando por entre os carros. O motorista xinga sem convicção. Ele faz de conta que não ouve. Não paga a corrida e o chofer continua íntegro.

Ajuda uma idosa a atravessar a rua. Ela não enxerga muito longe, e isso o comove. Parece bastante com sua avó, apenas um pouquinho mais corcunda. Nenhuma senhora faz bolinhos de chuva melhor do que a sua avó. Saudade dela e dos bolinhos. Quando a velhota chega ao outro lado, agradece a ajuda, pede a Deus que o abençoe. Não foi nada! Ela mal sabe que ele já é abençoado.

Anda um pouco mais rápido. Queria parar para rezar, mas precisa chegar ao ensaio e está atrasado. Pensando bem, não precisa chegar em lugar nenhum. Os caras que esperem, pois se ele não chegar, ninguém toca. Não existe banda de rock sem baixista. Diminui o passo e vai arquitetando um nome para o grupo. Também não existe banda sem nome. O Rinaldo sugeriu chamar de Clitóris Intumescido. Ele não acha ruim, entretanto, prefere arranjar coisa pior.

Reza baixinho pelo caminho, inventando uma oração. Toda vez que passa sobre o viaduto da igreja sente uma vontade louca de se jogar.

A porta da garagem está aberta. Ouve o barulho dos instrumentos desafinados lá dentro. Rinaldo reclama do atraso e ele responde: Vai tomar no cu! Pega de volta o Fender e sai. Não quer tocar numa banda sem nome, tem mais o que fazer da vida. Ninguém contesta.


Agora chuta uma latinha de refrigerante pela rua. Faz um esporro danado, as pessoas ficam olhando para ele. O baixo parece de chumbo, faz doer seu braço. Sempre quis tocar numa banda de rock, mas com caras legais, tipo o Nasi e o Scandurra, não com umas bichonas feito o Rinaldo e os primos dele.

Planeja ir para casa pensar. Só consegue pensar em casa, de banho tomado e barriga cheia. Imagina que deve haver um monte de bandas de rock precisando de baixista, ainda mais um que tenha um Fender bonito e caro que nem o dele, modelo precision bass, pesado que nem chumbo, que faz doer o braço.

Senta num ponto de ônibus com o estojo no colo. Mora na casa do caralho, nem sabe se passa a sua linha por ali, está acostumado a voltar de carona com o Rinaldo. Ao lado, um casal se beija. Pode ouvir até o barulhinho da saliva passando de uma língua para a outra. Não consegue deixar de olhar. O rapaz é preto e a guria é branca. Dizem que preto é mais bem-dotado, vai ver por isso ela o escolheu. O pau entra pela buceta e vai até o estômago.

Ele escuta os dois falarem em casamento. Acabarão casando mesmo, vão se encher de filhos, acompanhar novela da Globo, cagar de porta aberta. E não há nada pior do que cagar de porta aberta! Só novela da Globo, filosofa silenciosamente.

Quando o ônibus chega, tem sono e fome. Daria qualquer coisa por um pão com mortadela. Escora-se na janela e põe o contrabaixo no banco que sobrou. Não quer ninguém sentando perto. A cidade vai ficando azulada, mas ele cochila antes de reparar nisso.

03/03/2020

BLIND DATE


O problema é que a moça tinha dois queixos. Depois da primeira impressão, todo o resto parecia perfeito: roupas discretas, bolsa de couro natural, cabeça proporcional ao corpo, pele bem tratada, olhos claros muito grandes, dentes no lugar, sorriso bonito, orelhas pequenas, voz suave, narizinho arrebitado, unhas bem-feitas. Mas havia esse detalhe, do qual ele não conseguia desviar a atenção.

Aprendera em aulas de etiqueta que, ao conversar com qualquer pessoa, deve-se sempre fixar o olhar na região nasal, mais ou menos na altura das maçãs do rosto. No entanto, no caso de sua interlocutora, a tarefa parecia impossível. Abaixo da boca vinha o queixo e, em seguida, uma enorme papada, que ocupava o espaço onde deveria estar o pescoço e se estendia até o Bósforo de Almasy.

A conversa seguia agradável. Tinham gostos parecidos para música, cinema e literatura, trabalhavam em áreas afins, moravam em bairros vizinhos e, em épocas diferentes, estudaram no mesmo colégio. Vasculhando as árvores genealógicas, descobriram inclusive um parente comum nas gerações passadas. Porém, apesar de tantas coincidências, ela possuía dois queixos e ele, por sorte, apenas um.

Quando ela pediu licença para ir ao banheiro, ele aproveitou para reparar nos outros atributos de sua acompanhante. Tentava encontrar uma explicação para o único defeito que percebera até o momento. Talvez fosse uma gordinha que emagreceu, daí a sobra de pele na região. Contudo, o que viu foi um andar gracioso, uma bundinha firme e empinada, numa silhueta absolutamente esbelta.

Tarde da noite, ele pagou a conta, ainda sem saber se gostaria de encontrá-la novamente. Caminharam lado a lado até o estacionamento. Assim, de perfil, sob a luz da Lua, os dois queixos pareciam muito mais assustadores do que de frente, iluminados artificialmente no interior do bar. Ela abriu a bolsa, puxou um cigarro e perguntou se ele tinha fogo. Aliviado, respondeu sorrindo:

– Desculpe, eu não me relaciono com fumantes em hipótese alguma.