03/03/2020

BLIND DATE


O problema é que a moça tinha dois queixos. Depois da primeira impressão, todo o resto parecia perfeito: roupas discretas, bolsa de couro natural, cabeça proporcional ao corpo, pele bem tratada, olhos claros muito grandes, dentes no lugar, sorriso bonito, orelhas pequenas, voz suave, narizinho arrebitado, unhas bem-feitas. Mas havia esse detalhe, do qual ele não conseguia desviar a atenção.

Aprendera em aulas de etiqueta que, ao conversar com qualquer pessoa, deve-se sempre fixar o olhar na região nasal, mais ou menos na altura das maçãs do rosto. No entanto, no caso de sua interlocutora, a tarefa parecia impossível. Abaixo da boca vinha o queixo e, em seguida, uma enorme papada, que ocupava o espaço onde deveria estar o pescoço e se estendia até o Bósforo de Almasy.

A conversa seguia agradável. Tinham gostos parecidos para música, cinema e literatura, trabalhavam em áreas afins, moravam em bairros vizinhos e, em épocas diferentes, estudaram no mesmo colégio. Vasculhando as árvores genealógicas, descobriram inclusive um parente comum nas gerações passadas. Porém, apesar de tantas coincidências, ela possuía dois queixos e ele, por sorte, apenas um.

Quando ela pediu licença para ir ao banheiro, ele aproveitou para reparar nos outros atributos de sua acompanhante. Tentava encontrar uma explicação para o único defeito que percebera até o momento. Talvez fosse uma gordinha que emagreceu, daí a sobra de pele na região. Contudo, o que viu foi um andar gracioso, uma bundinha firme e empinada, numa silhueta absolutamente esbelta.

Tarde da noite, ele pagou a conta, ainda sem saber se gostaria de encontrá-la novamente. Caminharam lado a lado até o estacionamento. Assim, de perfil, sob a luz da Lua, os dois queixos pareciam muito mais assustadores do que de frente, iluminados artificialmente no interior do bar. Ela abriu a bolsa, puxou um cigarro e perguntou se ele tinha fogo. Aliviado, respondeu sorrindo:

– Desculpe, eu não me relaciono com fumantes em hipótese alguma.

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