23/04/2019

BODAS DE VENTO


Foi num sebo do interior de São Paulo que David descobriu o livro de Gregory Corso (1930-2001). A raríssima edição compilada de 
Gasolina & Lady Vestal, autografada pelo autor, com prefácio de Allen Ginsberg, custaria a ele dois ou três meses de salário, mas não se importava com isso. Qualquer dinheiro sempre lhe parecia bem gasto se fosse para colocar um sorriso no rosto de Ângela, sobretudo na quinta-feira que se aproximava, data em que completariam dez anos de casados. Era o livro predileto dela, que, por sua vez, já havia desistido de procurá-lo depois que seu exemplar desaparecera ao final de uma comemoração de Ano-Novo no apartamento em que moravam. Desde aquele dia, David passara a perseguir a obra por todo o Brasil, como um investigador que persegue um criminoso, disposto a pagar qualquer preço pela publicação, apenas para ver a esposa feliz e livrar-se da culpa de não estar atento ao sumiço de um bem tão valioso.

Ainda era véspera das bodas de estanho quando tomou o avião em vez de ir trabalhar. Não havia tempo para esperar pela entrega dos Correios. Além disso, precisava certificar-se de que o livreiro não o enganaria. Podia se dar ao luxo de viajar pela manhã e reaparecer à noite sem ser notado, pois a esposa saía antes para a empresa de contabilidade na qual trabalhava e onde, quase sempre, o expediente se prolongava. Seus horários de almoço também não coincidiam. Ele, na agência de propaganda, fazia seu próprio horário, e almoçar não era uma de suas prioridades.

Enquanto aguardava a decolagem, não conteve um sorriso ao imaginar que seria bem mais lógico pegar carona na carroceria de um caminhão, carregando apenas uma mochila velha nas costas. Certamente o faria se pertencesse à geração 
beat. A senhora na poltrona ao lado cochilava e pendia a cabeça para o seu ombro. Bondoso, David nada fez. Permitiu que a sonolenta passageira fosse assim escorada até o seu destino.

Chamou um táxi, estendeu ao motorista o endereço anotado num retalho de papel e recostou-se no banco traseiro para apreciar a paisagem. Não estava preocupado. Conhecia a assinatura do escritor americano, saberia identificar uma falsificação. Pensou na esposa e em tudo que aprendera com ela sobre Literatura durante uma década inteira de convivência.

David conhecera Ângela logo no primeiro ano da faculdade. Cursaram jornalismo e contabilidade, respectivamente. E ele nunca mais deixou de amá-la, embora tivesse consciência de que a recíproca jamais alcançara a mesma medida. No ano passado, na comemoração de nove anos, deu a ela um buquê de rosas e um relógio. Ganhou de volta um 
pack com seis cuecas, as quais passou a usar diuturnamente, alternando as cores de acordo com seu humor. Desta vez, por mais modesto e impensado que fosse o presente de Ângela para ele, iria surpreendê-la com uma prova de amor incontestável, motivo de sua busca por uma cidade desconhecida, a bordo de um táxi velho e barulhento.

Pediu que o motorista aguardasse na porta do sebo enquanto fechava o negócio. Pagou com cartão de débito e recebeu a encomenda embrulhada em papel de seda, acomodada confortavelmente num estojo aveludado. Trocou breves palavras com o livreiro, um senhor franzino e corcunda, que se revelou razoável conhecedor do poeta nova-iorquino. Recitaram, em uníssono, o único verso da obra que ambos sabiam de cor:


Braços estendidos,
mãos espalmadas contra o parapeito da janela,
ela olha para baixo,
pensa em Bartok, Van Gogh
e nas caricaturas do New Yorker.
Ela cai!
Levam-na embora com um Daily News no rosto,
e um lojista joga água quente na calçada.


Faltou pouco para aplaudirem-se mutuamente.


Gregory Corso, em 1989 (foto: Dario Bellini)

David voltou ao táxi e ao aeroporto e à sua cidade e ao seu apartamento. Anoitecia. Como previu, Ângela ainda não chegara. Tratou de esconder o presente no fundo de uma gaveta cheia de cacarecos, onde jamais seria encontrado, nem mesmo pela diarista, que espanava tudo superficialmente duas vezes por semana e lhe cobrava mais de cem reais a cada visita. Precisava trocar de faxineira. Não gostava de superficialidades em nenhum aspecto de sua vida, muito menos em relação à limpeza da casa.

Ângela irrompeu pela porta quase uma hora depois do marido. Largou a bolsa, descalçou os sapatos e perguntou o que havia para comer. David a beijou na boca e sugeriu que ela tomasse um banho enquanto ele providenciaria o jantar. Comeram em silêncio. Ela quis dormir cedo. Ele, no entanto, ficou alerta até o meio da madrugada, ansioso pela manhã seguinte. Sentia-se como uma criança que sabia exatamente a resposta para a indagação que o professor faria na prova oral, aplicada de surpresa no meio da aula.

Quando o sol entrou pela janela do quarto, às seis e meia da manhã, David praticamente não tinha pregado o olho. Não sabia se corria para buscar o livro ou se esperava Ângela despertar. O que Gregory Corso faria em seu lugar? Trouxe o pacote até a cama, escondeu-o debaixo de seu travesseiro.

Ângela se remexeu, resmungou e, sem abrir os olhos, levantou e caminhou na direção do banheiro. Urinou, apertou a descarga, lavou as mãos e o rosto. Não compreendia muito bem o meio-sorriso do marido ao voltar para o quarto; contudo, num providencial lampejo, recordou a data. Apelou para a sinceridade, seguida de um abraço.

– Parabéns pelo nosso dia, amorzinho! Eu não comprei nada porque não tive tempo, você me perdoa, né?

Rápido como um voo de ida e volta ao interior de São Paulo, admirado da própria desfaçatez, ele respondeu:

– Ah, que bom... eu também não comprei nada e fiquei preocupado de você ficar chateada comigo... parabéns pelo nosso dia, amorzão!

Como acontecia todas as manhãs, Ângela se aprontou e saiu antes dele para o escritório de contabilidade. David telefonou para a agência e avisou que chegaria mais tarde. Ligou o notebook ao mesmo tempo em que desembrulhava a raríssima edição compilada de 
Gasolina & Lady Vestal, autografada pelo autor, com prefácio de Allen Ginsberg. Fez algumas fotos com o celular, inclusive da página assinada por Gregory Corso. Publicou o anúncio do livro de poesias em um site de vendas on-line, por uma pechincha equivalente a quatro meses de seu salário. Dane-se a geração beat, pensou sem remorso.
  

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