27/08/2019

A LENDA*


Acabara de deixar um passageiro em Higienópolis. Longe de seu ponto, mas aproveitando que já estava por ali, resolveu procurar a oficina que lhe recomendaram, em algum canto do Jardim Lindoia. Precisava ver o que era esse barulho no motor, cada vez mais agudo, sempre que acelerava. "Correia dentada... só pode ser correia dentada", pensava ele, ao mesmo tempo em que correspondia ao aceno de um transeunte.


Mauro Edson Santana Castro, o taxista mais famoso de Porto Alegre, nunca fora afeito a manutenções periódicas em seu veículo. Preferia trocar de carro (como fizera recentemente) a consertar pequenos defeitos. No entanto, o caso agora era diferente: com o táxi ainda na garantia, não se conformava com a incompetência da rede autorizada, que não havia descoberto o defeito em duas revisões seguidas. Por isso, meio a contragosto, estava prestes a apelar para uma suspeitíssima mecânica de fundo de quintal.


Quando avistou a placa, na qual a palavra "suspensão" aparecia escrita com cê-cedilha, não teve dúvidas de que chegara ao seu destino. Ao descrever os sintomas para o mecânico-chefe, descobriu que correia dentada não existe mais (modernamente fala-se apenas "correia") e que o problema era de simples solução. "Nada que uma enceradinha com vela de sete dias não resolva", concluiu o curandeiro automobilístico do estabelecimento. Assim, aliviado com a notícia do baixo custo do conserto, bateu-lhe uma tremenda vontade de fazer xixi.


Corajosamente, Mauro encaminhou-se ao banheiro que ficava na parte de trás da oficina, ao lado da máquina de calibragem. No ambiente, ricamente decorado com calendários de garotas seminuas, encantou-se com uma loira de olhar distante e seios fartos. Permaneceu alguns segundos hipnotizado diante dela, sobretudo por uma pinta próxima ao canto esquerdo do lábio superior, no melhor estilo Cindy Crawford. Pensou em arrancar a página da folhinha como recordação, mas contentou-se em fotografá-la com a câmera do celular.


Pouco depois, já no caminho de volta para o seu ponto (na esquina da rua Saldanha Marinho com a avenida Getúlio Vargas), recolheu uma passageira que lhe fazia sinal desesperadamente. Pelo retrovisor, logo que a mulher guardou os óculos escuros num estojo, ajeitando-se nervosamente no banco traseiro, Mauro a reconheceu e não se conteve:


– Santa Francisca Romana! Mas é a loira do banheiro...


Constrangida, a modelo baixou os olhos e pôs-se a procurar algo em sua bolsa. Não era um telefone nem maquiagem nem nenhuma arma de fogo. Finalmente, agora sorrindo enigmaticamente, pegou uma caneta e um exemplar bastante surrado do livro de crônicas lançado pelo calvo chofer de praça em 2006. Com as mãos trêmulas de emoção, cutucou-lhe o ombro e sussurrou com voz rouca, suplicante:


– Escreve aí, seu Mauro: "Para Gislaine, com carinho", por favor.



*Crônica antiga, de 2009, em homenagem ao amigo Mauro Castro, autor dos quatro volumes de "Táxi Tramas: Diário de um Taxista", que viraram até série de TV, pela Prime Box Brazil, em 2019.

Nenhum comentário:

Postar um comentário