22/10/2019

DE CUJUS


Eu nunca tinha ido a um velório. Nem dos mortos da minha família nem da família de ninguém. Mas acabei indo a esse, só para fazer média com a menina com quem eu estava saindo. Ela choramingou um "fica do meu lado" tão fofinho que não pude recusar. Além do mais, o falecido em questão era seu avô materno, dono de um considerável patrimônio em terrenos e salas comerciais, prometido em vida à neta predileta no caso de óbito repentino e irreversível. Era o caso, aparentemente.

Na modesta capela da funerária, uma multidão de parentes se aglomerava. Fiquei do lado de fora enquanto pude, consolando a minha pequena, oferecendo o ombro para que ela derramasse suas lágrimas e contando a quantidade de arranjos e coroas de flores espalhadas por todos os lados, do pátio externo ao entorno do caixão. Uns choravam, outros sorriam. Sim, sorriam. Um sorriso de Monalisa, prontamente transformado em pesar quando da aproximação de algum descendente mais íntimo do defunto.

Os jovens, entre adolescentes e adultos imaturos, alguns vindos da cidade vizinha, reunidos num canto afastado, já combinavam programa para a noite. Os idosos, sentados nas poucas cadeiras disponíveis no local, tentavam adivinhar quem seria o próximo a dobrar o Cabo da Boa Esperança, pois regulavam em idade com o cadáver.

Em circunstâncias nada ideais, fui apresentado a vários primos, primas, tios, tias, amigos e amigas da família para a qual eu pretendia entrar. Educadamente, apesar da insistência da ala masculina, me recusei a contar piadas que alegrassem o ambiente e me dispus a confirmar os resultados dos jogos do Brasileirão depois do enterro.

Alheio ao movimento à sua volta, o avô da futura mãe dos meu filhos repousava lúgubre, decúbito dorsal, no caixão aberto.

Quando a neta foi entrando no salão, me puxando pela mão, tentei resistir delicadamente, mas não houve jeito. Eu ia chegar perto de um morto pela primeira vez na vida, e logo de um homem a quem nunca tinha visto mais gordo  nem mais branco nem mais gelado , parecido com uma vela de sete dias derretida, de terno e gravata, com algodõezinhos no nariz.

A fila para o último adeus diminuía. Atrás da namorada e imediatamente à frente da viúva, ambas aos prantos, procurei imaginar como se age ou o que se diz numa hora dessas. Não que eu tivesse qualquer obrigação, afinal, nem sabia o nome do patriarca, apenas queria evitar um fiasco em pleno funeral, antes de firmar compromisso.

Cara a cara com o de cujus, em pensamento, pedi uma bênção para o romance que se iniciava. O falecido pareceu entender o recado. Emitiu um som semelhante a um peido, só que com a boca. Em seguida, expirou o ar derradeiro dos pulmões, atirando longe a bolinha de algodão de uma das narinas. Definitivamente, aquilo era um "não" em forma de suspiro. Sem que ninguém notasse, cobri rapidamente o orifício nasal do velho, persignei-me e saí de fininho. Direto para o banheiro da capela mortuária.

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