15/10/2019

COMPOSTURA NA PUBLICIDADE


Sentei-me numa das pontas da grande mesa da sala de reuniões. A moça da cozinha já servira a água e o café, Miguel já estava ao meu lado. Ainda de pé, a assistente de atendimento conversava animadamente com o diretor de arte da campanha. Todos aguardávamos o cliente, um empresário, dono de uma gigantesca loja de calçados, e um de seus gerentes, aos quais apresentaríamos meia dúzia de anúncios para revistas e jornais, um folder com as promoções do mês e algumas sugestões de outdoors simples e duplos.

– Tá por dentro de tudo, né? – Miguel perguntou, preocupado.
– Relaxa, passei a noite estudando as peças.
– Ficaram legais, né?
– Pra quem são, ficaram ótimas.

A porta de vidro se abriu e a recepcionista fez entrar um senhor grisalho, de terno e gravata, que, não fosse a cara fechada, poderia ter sido apresentador de qualquer programa de auditório da década de 1960. Logo atrás, bem mais à vontade e rebolativo, o coordenador de marketing da rede calçadista.

– Boa tarde, senhores – disse o velho, sem entusiasmo.

Sentaram-se nas cadeiras à minha esquerda. Ambos esfregaram as mãos, mais para mímicos siameses do que para executivos. Cutuquei Miguel com o cotovelo para fazê-lo entender que poderia começar seu discurso e mostrar as pranchas com os layouts e o boneco do folheto.

Assim que o meu amigo redator começou a falar, flutuei por sobre a mesa, como se tivesse ingerido alguma droga lisérgica, observando tudo e todos de fora do meu corpo. Vi a mão do diretor de arte na coxa da assistente de atendimento; vi a cara de nojo do velho e a cara de tédio de seu aspone gay; acompanhei o esforço da equipe para tentar aprovar um material sofrível, com fotos mal escolhidas e fontes inadequadas, que, na opinião dos criativos, poderia até ganhar prêmio em Cannes. E me vi na cabeceira da mesa, ainda com boa aparência, um ou outro fio de cabelo branco, mais para coroa do que para jovem, com ares de intruso, de bicão, de ator de pegadinhas.

– Onde estão as fotos da minha neta que eu pedi para colocar?
– Desculpe, senhor, as fotos não tinham qualidade – respondi.
– Mas vocês são pagos para fazer o que eu mando!
– Opa, peralá! Somos pagos para fazer a divulgação da sua loja...
– E fazem muito malfeita, por sinal.
– É que não dá pra fazer milagre com aquela espelunca – arrematei.

O velho pulou da cadeira. Também fiquei de pé e quase encostei meu nariz no dele. Pude sentir o fedor de pinho do seu Très Brut De Marchand na pele enrugada. Alterado e corado, ameaçou:

– Essa loja está na família há cem anos, seu moleque!
– Pois então o senhor enfie essa loja no seu cu centenário!

Houve princípio de quiproquó. A reunião seguinte, na tarde do mesmo dia, seria com os outros sócios da agência de propaganda. Na pauta, a minha exclusão do contrato social, em definitivo.

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