08/10/2019

SETE VIDAS


O velho caminha lentamente, apoiando-se no cabo da pá que carrega na mão esquerda. Na mão direita, um saco de lixo com o cadáver do gato de estimação. Toma mais um pouco de ar e continua rumo aos fundos do terreno. Sente os pulmões ressecados, a musculatura frouxa pela falta de exercícios, as articulações dormentes. Vai entrando pela sombra das árvores. Repara na abundância de verde, mas não se impressiona. Ignora a natureza e suas belezas, como fizera desde sempre. Estaciona-se. Inspira, expira. Escolhe um ponto de chão mais macio e marca um xis com o bico do sapato. Encosta a pá no muro, larga o embrulho com a criatura morta. Olha em volta, num gesto mecânico.


O velho, que nem é tão velho se comparado aos outros velhos, começa a cavar sem ânimo. Enfia a ferramenta no solo, usa um dos pés para empurrar mais fundo, faz a alavanca e arranca um naco de barro misturado com areia e capim. Tenta acelerar o processo, mas consegue apenas acelerar seus batimentos cardíacos. Vai amontoando a terra ao lado do buraco, que nem precisa ser tão largo nem tão profundo, pois o corpo na sacola não é de um felino adulto. Inspira, expira. A camiseta vai grudando em suas costas.

Apronta o funeral da melhor maneira que suas forças permitem. Gostaria de ter preparado enterros como aquele para muita gente: para quem gostava pouco, para quem não gostava, para quem odiava. No entanto, ele mesmo morrera antes, de certa forma. O velho goteja de suor em pleno inverno. Um suor que desce pela testa e vai se acumulando nas sobrancelhas.

Não imagina quanto tempo se passou desde que saiu do quarto. Meia hora, talvez. Mas é improvável que sintam sua falta. Então desenrola o saco plástico e deixa cair o bicho, já endurecido, a pelagem alaranjada sem nenhum brilho ou maciez. Chuta-o para dentro da cova, sem pompa nem cerimônia. Dedica alguns segundos a avaliar toda a cena antes de puxar o barro de volta, cobrindo-o rapidamente, como se tivesse receio de que o animal pudesse reviver e fugir. Aguentaria um fantasma ou dois ou três, qualquer um de seus fantasmas assombrando suas noites, mas não resistiria se voltasse a ter a companhia de um único ser vivo. Enterraria a si próprio antes que isso acontecesse.

O velho olha em volta novamente. Inspira, expira. Ajeita a areia que cobre a sepultura, encosta a pá outra vez no muro e procura por uma nesga de brisa. Não sabe se deve rezar, cantar uma canção em homenagem a todos os gatos do mundo ou só virar as costas e ir embora. Abaixa a parte da frente do moletom, segura o pênis flácido, puxa para trás toda a pele que recobre a glande e aponta-o para a terra recém-remexida. Concentra-se um pouco e mija com dificuldade. Depois se recompõe para fazer o trajeto de volta.

Sunrise Cat (Caroline Conkin, 2014)

Diante do retorno tormentoso, o enterro minimalista parece ter sido a parte fácil da tarefa. Não tormentoso de tristeza pelo gato, longe disso. É que já não pode percorrer nem mesmo pequenas distâncias. Ao menor sinal de palpitação, caga-se de medo de perder os sentidos sem ser notado, nos fundos do quintal da clínica, por exemplo, em meio à mata por onde somente ele costumava se embrenhar de vez em quando. Apoia-se na pá, faz dela uma muleta. Não fosse o desleixo da roupa, poderia se fazer passar por um profeta com o seu cajado. Bem, não por um profeta, na verdade, apenas por um maluco bisonho.

Na metade do caminho inverso, avista um dos enfermeiros. O velho para e observa, a fim de divertir-se com o andar desengonçado e a falta de habilidade do serviçal em mover-se pelo terreno irregular.

– Bom dia, seu Dávide!
– Não é Dávide, é Dêividi.
– Chegou uma encomenda pro senhor, coloquei no seu quarto.
– Que merda.
– Deixa que eu levo essa pá...
– Toma, vai na frente.

O velho ainda permanece parado por alguns instantes enquanto espera o rapaz sumir pela trilha. Em seu íntimo, gostaria de ser atingido por um raio em vez de precisar voltar ao asilo. Suspira. Retoma a passada lenta. Aproxima-se do casarão de paredes azuis, telhado azul, janelas e colunas azuis. Agora a passagem de pedregulhos transforma-se numa calçada lisa e bem cuidada. Inspira, expira. Sobe um par de degraus e dá apenas mais quatro passos sobre o piso estampado em direção ao hall de entrada, e dali ao corredor que leva aos dormitórios.

Tropeça na caixa de papelão logo que empurra a porta. O embrulho se mexe. E se mexe novamente. Um miado muito fraco vem de seu interior e o velho nem precisa abri-lo para entender o que está acontecendo.

– Esse gato não morre nunca... filho de uma puta!

Nenhum comentário:

Postar um comentário