24/06/2024

AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA


Vou confessar a vocês: sempre gostei de escrever, desde pequeno. Os meninos da rua em que eu morava se reuniam para jogar bola, soltar pipa ou andar de bicicleta, e eu ficava em casa, escrevendo, tocando violão ou lendo. Escrevia letras de música, roteiros, poemas, pequenos contos e até um diário relativamente secreto.

Minha mãe, quando lia alguma redação nos meus cadernos de escola, dizia afetuosamente: "Tu levas jeito pra cacete, meu filho". A primeira namorada, que às vezes roubava o meu diário para ver se eu não andava apaixonado por outra, também comentava: "Você leva jeito pra cacete, Cachorrinho". E as professoras de Língua Portuguesa, apesar de me considerarem um tanto disperso, elogiavam com frequência: "O senhor leva jeito para cacete, pode acreditar". Até que me tornei um cacete, pois parecia ser essa a minha vocação.

Claro que joguei bola, soltei pipa e andei de bicicleta. Namorei outras meninas depois da primeira namorada. Entretanto, foi só lá pela oitava série que ganhei a primeira nota dez em Redação. No mesmo ano, o aluno mais desajustado da escola, o Miguel, publicou um livro. Lembro que, na época, apenas pensei com os meus botões: "Porra".

Imediatamente, comecei a desenvolver uma saga que levou todo o segundo grau para chegar ao fim. Era uma história – sobre um guri de onze anos que descobria que tinha um tumor no cérebro e precisava dar um jeito de comer uma vizinha para não morrer virgem – que não se aplicava nem a crianças nem a adolescentes, portanto, impublicável.

Desiludido com a primeira tentativa fracassada, deixei a Literatura de lado e comprei uma guitarra. Foi um período de vacas gordas. E também de vacas magras, altas, baixas, pretas, brancas, novas, velhas e japonesas. Sobre dinheiro, não posso dizer nada, mas é certo que músicos ganham mais mulheres do que escritores.

Já na faculdade de Letras, década de 1990, uma adorável professora de Linguística voltou a repetir a frase que me era tão familiar: "Você leva jeito, rapazinho". "Pra cacete?", eu perguntei. "Não, não, acho que você dá para cronista". Dessa vez não me deixei influenciar. Nunca dei nem para cronista nem para contista nem para poeta.

Então, o tempo passou. Muito mais tempo do que eu gostaria, aliás. Li bastante e escrevi pouco, até sofrer um espasmo de lucidez (talvez fossem gases, não tenho certeza) e ganhar novo ânimo para exercitar esse meu dom: o dom de transformar fatos irrelevantes em entretenimento barato. Depois de um livrinho de contos recém-publicado, acredito ser agora a derradeira chance de deixar de ser o cacete que sempre fui, além de preservar a integridade das minhas partes peripopéticas, sobretudo aquela onde o sol não brilha e que só a terra há de comer.


Hotel Hannover (Mondru, 2024)

22/06/2024

JOZIANE


A Joziane era a menina mais bonita do meu bairro. Antes mesmo de eu conhecê-la, logo que me mudei para a casa nova com meus pais e irmãos, já ouvia os outros meninos falarem maravilhas sobre ela. Diziam que era uma deusa, uma princesa, uma bênção divina, cuja beleza era indescritível e, sobretudo, inalcançável.

Além dos guris da rua, algumas gurias também teciam elogios à outra, que, curiosamente, não era vista como concorrente. Contavam que a Joziane era uma amiga exemplar, que jogava vôlei como ninguém, que era carinhosa com a família, que ia bem na escola, enfim, que possuía incontáveis qualidades. Era tão sem defeitos, que não gostava de festas e não tinha namorado, pelo que pude apurar na vizinhança.

Assim que descobri seu endereço, a uns dois quilômetros de onde eu morava, passei a rodear sua casa com frequência, montado na minha bicicleta Caloi de dez marchas. Quando não estava na escola, era certo eu estar dando voltas pela frente do quintal da Joziane, ansioso por encontrá-la ao vivo pela primeira vez.

Ainda correram alguns dias até o momento esperado. Da porta dos fundos da construção simples, de madeira, ela saiu segurando um balde de roupas recém-lavadas, e pôs-se a estendê-las no varal, sem notar minha presença, espiando encantado por entre as frestas do cercado. Joziane tinha olhos da cor do céu, cabelos dourados como o Sol e uma pele tão branca quanto a areia de uma praia selvagem.

Durante vários meses eu sonhei com ela, vigiei sua casa, guardei seu andar e seus gestos na minha memória de moleque. A Joziane devia ser uns três ou quatro anos mais velha que eu, praticamente mulher feita se comparada a mim, um fedelho de dentes tortos, pernas finas e espinhas na cara.

Quando meus pais anunciaram que nos mudaríamos novamente, caí doente. Não conseguia me conformar em ter de viver longe da Joziane, aquela que eu elegera para ser a mãe dos meus filhos, mesmo jamais tendo lhe dirigido a palavra. A febre e as dores pelo corpo só aplacaram quando não havia mais jeito. O caminhão partira com as nossas coisas, inclusive a minha bicicleta, da qual eu nunca mais quis saber.

Quase trinta anos se passaram, mas nem precisei de tanto tempo para esquecê-la, apesar de não ter encontrado nenhuma outra como ela. Cultivei diversos amores, boa parte platônicos, e até me casei em duas oportunidades, mas de vez em quando me pego imaginando como teria sido a vida ao lado da Joziane.

Agora, espiando envergonhado por uma fresta do cercado, vejo sair uma senhora com um cesto de roupas recém-lavadas pela porta dos fundos da construção simples, toda de alvenaria. Tem os cabelos desgrenhados e a pele maltratada pelo sol, porém, seus olhos azuis continuam sendo os mais lindos do bairro. A dona Joziane logo tratou de pendurar as peças no varal, displicentemente, sem notar a minha presença.

16/04/2024

SOLANGE SO LONELY


Já não era mais criança. Muito pelo contrário, acabara de completar trinta anos. E aos trinta anos, dizem, as meninas precisam fazer de conta que são mulheres. Solitária, sem parentes na cidade, desejava apenas não chegar aos quarenta sem ter se apaixonado.

Os homens, até então, entravam em sua vida e saíam dela como escovas de dente que precisam ser substituídas sempre que as cerdas se deformam. Talvez o olho esquerdo ligeiramente caído e a cicatriz no queixo fossem o seu charme, mas de nada adiantava ser diferente na aparência e absolutamente comum no intelecto. Suas limitações se revelavam rápido, depois de três ou quatro meses de relacionamento. Assim, descerrada a máscara, não tinha carisma nem criatividade para manter-se atraente.

Pouco seletiva, dava-se melhor com os negros, não entendia bem o motivo. Em estatísticas pessoais, considerava os morenos complicados, os ruivos insossos e os loiros uns pegajosos.

Não fumava. Entretanto, bebia todas as noites, mais sozinha do que acompanhada. E uma vez por semana, embriagada, ligava para o celular de algum ex-namorado. Tinha esperança de que um deles voltasse para ela, subitamente, durante um sábado vadio, mesmo que fosse apenas pelo sexo. Apesar da idade, não sabia exatamente a diferença entre simpatizar e gostar. Sabia somente que não amava ninguém. E que ninguém a amava.

Vez ou outra deixava cair as lentes de contato no ralo da pia. Chorava. Sorria muito mais raramente agora do que há dez anos, quando fugiu de casa para correr o mundo. Não correu. Na verdade, nunca havia saído do sul do país, mas pensava em viajar para Minas Gerais qualquer hora. Tivera sua única experiência homossexual com uma amiga de Santa Rita do Sapucaí. Não se arrependia.

Falava pouco, cada dia menos. Separava o lixo orgânico do reciclável. Lia a coluna do Contardo Calligaris e fazia análise. Frequentava bares para solteiros e adaptara-se bem à camisinha feminina.

Ultimamente, estava interessada no vizinho do andar de cima, com quem pegava o elevador quase todas as manhãs. Tinha tudo planejado, caso ele não correspondesse às suas investidas até o próximo fim de semana. Fecharia todas as janelas do apartamento e tomaria seus habituais sedativos, não sem antes ligar cuidadosamente o gás. Afinal, já não era mais criança.

04/03/2024

ACRILIC ON CANVAS


Não sei em que momento ela se mudou para o meu apartamento. Começou com uma trepada e um banho; depois uma trepada e um jantar; mais tarde, uma trepada e um cochilo; até acabar numa trepada, seguida de cochilo, banho, jantar, outra trepada e uma noite inteira de roncos, pernas nervosas, sono superficial e o sol entrando pela janela na manhã seguinte. Foi ficando.

Era estudante de Artes Plásticas. Além de roupas e maquiagem, trouxe cavalete, telas, pincéis, espátula, paleta, godê, solvente, carvão, grafite, verniz e tintas, muitas tintas, acrílicas e a óleo. Passaram a colorir minha vida pequena e lenta o branco de titânio, o azul-ultramar, o verde-oliva, o verde-ouro, o verde-oriental, o amarelo-ocre-claro-dourado, o terra de siena e o vermelho-veneza.

Tinha predileção pelos impressionistas: Degas, Manet, Monet, Sisley, Renoir, Pissarro. Passava os dias a reproduzir as pinturas mais famosas da segunda metade do século XIX, sempre atenta às incidências de luz e à falta de nitidez proposital em cada contorno, características daquele movimento. Dos brasileiros Visconti e Almeida Júnior, então, não lhe escapava um mínimo detalhe.

Valia-se da técnica do acrílico sobre tela, devido à secagem mais rápida, embora, eventualmente, se aventurasse pelo óleo sobre tela, que exigia a utilização de verniz de linhaça como secante ou diluidor e deixava o ambiente com um fedor semelhante ao de um gambá após uma aula de aeróbica. Mas eram transtornos menores e passageiros, pois assim que terminava seus trabalhos, em consideração ao nosso lar de dimensões reduzidas, levava os quadros para a casa dos pais. Segundo o porteiro do prédio, a mãe ou o pai ou ambos apareciam antes do fim da tarde, enquanto eu ainda estava no trabalho, portanto, nunca cheguei a conhecê-los.

Entre trepadas e pinceladas, seis meses se passaram. Também não sei em que momento cheguei ao apartamento e não a encontrei. Nenhuma tela, roupa, vestígio. Liguei a tevê e continuei procurando um bilhete ou qualquer outra pista de seu sumiço. No programa policial, uma quadrilha de falsificadores de obras de arte. Da direita para a esquerda, ela era a terceira. Uma pintura de tão linda.

13/11/2023

APARTAMENTO 201


Acordo assustado com a trepidação da furadeira na parede. É domingo, dia de descanso, e esse filho da puta do andar de baixo, mesmo tendo recebido uma cópia do estatuto do condomínio com o horário de silêncio grifado com caneta marca-texto, insiste em descumpri-lo. Depois tem gente que não entende por que é que um sujeito discreto e pacato como eu, que viveu a vida inteira em apartamento, de uma hora para outra esfaqueia certos moradores até a morte.

Ontem à noite foi o cachorro da vizinha de cima que não me deixou dormir. Passou a madrugada uivando, sentindo falta da dona, aquela vadia. Durante o sábado, foram as merdinhas das crianças no playground. Parece até que não têm pais, pois passam mais tempo incomodando pessoas que não incomodam ninguém do que na escola ou em casa. São tão chatas, gritam tanto, que até já compreendi por que os adultos as mandam brincar nas áreas comuns do prédio, bem longe da família. Como hoje não se pode mais cobrir os bastardos de porrada, apenas torço para que peguem uma doença ou quebrem uma perna.

Enquanto não consigo voltar a dormir, fico olhando para a piscina, onde as senhoras expõem suas pelancas e varizes, onde as meninas novinhas expõem seus peitos de silicone e onde as outras mulheres, nem novas nem velhas, expõem suas amarguras. No trampolim, um bobalhão de trinta e poucos anos, que ainda mora com a mãe, dá piruetas e tenta chamar a atenção das adolescentes. Bem feito! Bateu com a cabeça na borda de azulejos e teve de ser carregado pelo zelador.

Ligo a TV e o ar-condicionado. Não que precise de distração ou esteja com calor, nada disso, é que o ruído constante de ambos me protege temporariamente de marteladas e furações, de móveis sendo arrastados, de casais discutindo, de liquidificadores e aspiradores de pó, de música ruim, de sapatos de salto, de camas rangendo, de gritos, gemidos e sexo sem a minha participação. Ainda assim, com os ouvidos a salvo, o nariz nunca estará livre de uma comida fedorenta. O cheiro entra pelas frestas e gruda em tudo. Nessas horas, tenho a nítida impressão de que algum corno está a cozinhar um cadáver deteriorado, um gambá ou um caldeirão de cuecas usadas.

Escurece, finalmente, depois de um pôr do sol de cinema. Uma nuvem de cupins invade o apartamento antes que eu tenha tempo de fechar os basculantes da cozinha e do banheiro. Aposto que os bichos não entraram na casa de nenhum dos esporrentos, catinguentos e mal-educados da vizinhança, só aqui mesmo. Então, lembro de uma frase que meu avô sempre repetia em tardes assim bonitas: "Lindo dia para morrer enforcado". E não digo que já não tenha pensado nisso.

17/08/2022

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL


Entrou em casa cambaleando, já com o dia amanhecido. Abriu a geladeira e serviu-se de mais uma latinha. Procurou pelo controle remoto e o encontrou ao lado da foto em que a ex-esposa segurava o filho no colo. Ainda não entendia por que estava proibido de se aproximar de ambos, pois considerava que os catiripapos na mulher e o safanão na criança tinham sido apenas reflexo da desclassificação de seu clube da Copa do Brasil.

Mas não pretendia lembrar disso agora, então ligou a TV no canal de esportes, ao mesmo tempo em que perguntou no grupo o horário do jogo.

Era uma daquelas partidas das onze da manhã, pelo Brasileirão. O time para o qual torcia ocupava o quarto lugar na tabela. Vencendo, saltaria à vice-liderança; perdendo, a depender de outros resultados, poderia até cair fora da zona de classificação para a Sul-Americana. "Nos nossos domínios, contra esses fracassados, são três pontos garantidos", pensou.

Faltando meia hora para o início da peleja, decidiu que não se apresentaria à delegacia móvel do estádio, afinal, não poder ir ao campo somente por ter jogado uma bomba caseira na direção da torcida adversária era uma punição injusta e desproporcional. Aproveitou a espera para acessar uma de suas redes sociais e publicar ofensas e ameaças à equipe rival. Depois, ao conferir as escalações, fez também uma postagem chamando o técnico de burro.

Logo no pontapé inicial, após enxugar mais algumas cervejas diante da TV, celular em punho, usou a hashtag da emissora para demonstrar seu descontentamento com o narrador, que torcia contra; e com o comentarista, que não entendia de futebol, além de ser claramente gay e comunista. Ao árbitro do jogo, que não marcara um pênalti no primeiro lance de perigo, a indignação, em vez de texto, veio em voz alta:

– Só podia ser esse crioulo ladrão!

No intervalo, à repórter de campo, que usava máscara e mantinha distância ao entrevistar os jogadores, questionou retoricamente:

– Ué, não tomou vacina? Pra que essa máscara, vadia?

Decorridos alguns minutos do segundo período, os dois elencos pouco produziam. E ele, tendo passado a noite em claro, acabou cochilando ali mesmo, no sofá da sala. Despertou já nos acréscimos, assustado com um grito de gol do narrador inimigo. O apito final soou em seguida, confirmando a derrota dos locais pelo placar mínimo.

O torcedor solitário esfregou os olhos. Tomou um último gole de bebida quente, ao mesmo tempo em que perguntou no grupo se estava de pé a tocaia que haviam preparado para o ônibus dos visitantes. Só não lembrava é se tinham combinado no entorno do estádio ou na saída da cidade.

Antes de guardar o soco-inglês no bolso do moletom, virou-se para o dispositivo de inteligência artificial e ordenou:

– Alícia, toque o hino do meu time de coração!

Como sempre, o robô-aspirador nada respondeu, e continuou a faxinar o chão imundo.

04/08/2022

O TAPETE VOADOR


Quem mora em edifício sabe bem do que vou falar.

Geralmente, é pela área de serviço que escutamos os sons mais estranhos e as conversas mais bizarras, vindas dos apartamentos vizinhos. Sei lá, deve ser por causa da conformação arquitetônica, mas o fato é que qualquer coisa que se cochiche parece propagada por todo o prédio, amplificada dez vezes, o que equivale a publicar nossos segredos na pauta da reunião de condomínio.

Pois eu acabara de dar comida aos meus gatos quando reconheci a voz do morador do andar de cima, aparentemente falando sozinho. Depois me toquei que ele estava ao interfone (já que ninguém respondia) e, sem grandes alterações no tom de voz, dizia mais ou menos assim:

Alô! É do novecentos e três? Quem fala? Cremilda? Ah, Cremildes... bom dia, dona Cremildes, aqui é o seu vizinho do setecentos e três, o Ademar, tudo bem com a senhora? (...) Eu sei que a senhora está fazendo o almoço, mas é assunto rápido, é sobre o seu tapete... (...) Como que tapete? A senhora não tem um tapete de pele de urso? (...) Pois é, este seu tapete, que a senhora provavelmente estendeu na janela para pegar um solzinho, acabou de voar janela abaixo e caiu lá no playground. (...) É, no playground. (...) Eu sei que a senhora vai mandar a faxineira buscar, só que o problema é um pouquinho mais grave: é que, na passagem, o seu tapete derrubou a minha bochecha-de-velho. (...) Cirurgia plástica? Não, dona Cremildes, eu não sou velho nem bochechudo, me refiro à salacia polyanthomaniaca, que é uma planta ornamental da família das hipocrateáceas, popularmente chamada de bochecha-de-velho. (...) Isso mesmo, a pobre plantinha se estabacou lá embaixo junto com um vaso de porcelana de vinte e dois centímetros de altura por dezoito de diâmetro. (...) Tudo bem que foi a faxineira quem colocou o tapete na janela, mas a 2 senhora é dona do tapete e dona da faxineira, se é que faxineira tem dono. (...) Como e daí? Eu acabei de perder uma planta e um vaso por causa do seu tapete. (...) Quem é que está queimando? Ah, o feijão... (...) A planta custa quarenta e oito reais e o vaso doze... sessentinha! (...) Não vai pagar? Como não vai pagar? (...) Tudo bem, dona Cremildes, então eu fico com o seu tapete de pele de urso até segunda ordem, combinado? Passar bem!

Na sequência, ouvi a batida do interfone no gancho, uma porta se abrindo e, segundos depois, ecos na escadaria do prédio, de passadas nervosas, em direção ao playground. Lá embaixo, preso na gangorra, um cafona, porém valioso, tapete de pele de urso.

16/07/2021

UM GIRASSOL DA COR DE SEU CABELO


Como bom e solidário amigo de oito braços, sem terceiras intenções, ofereço o ombro para receber as lágrimas que ela acumulou durante toda a adolescência. Sem motivo aparente, desandou a falar da vida amorosa e agora soluça incessantemente. Que maçada! Parecia uma garota tão bem resolvida no nosso primeiro encontro...

Enquanto ela chora, penso na Laika, aquela cadelinha que foi mandada para o espaço e nunca mais voltou. Cada merda que se comete com quem é indefeso, às vezes custo a acreditar. Quando eu era pequeno, queria entrar para a Aeronáutica. Também tinha certeza de que a mulher da minha vida seria loira. Como não se pode ter tudo, acabei deixando as asas de lado. Nem as de anjo sobraram. Passei a caminhar ao invés de voar, sempre na contramão do sentido contrário invertido.

Vem, anda comigo, nada nos prende, vamos sumir..., cantarolo baixinho, distraído, justo no momento em que ela estremece. Levo um susto e tenho vontade rir, como em 1984, num cinema 180 graus, quando a primeira namorada enfiou a língua na minha boca. Ela não tinha tatuagens nem usava Havaianas dourada nem guardava segredos. Até hoje me faz lembrar só de palavras com pê: pranto, pitanga, perfume, piorra, pastiche, paixonite. Pau, porra, punheta, prexereca. Pressentimento.


Mas é difícil permanecer romântico quando existe alguém encharcando a manga da sua camisa de flanela quadriculada, que tem um bolso do lado esquerdo e uma foto três por quatro dentro, com um número de telefone anotado no verso. Ligo e proponho casamento ou compro uma bicicleta ergométrica?

Outro soluço, agora sem a mínima graça. Funga, assoa; assoa, funga. Vai se recompondo a destrambelhada. Pede desculpas, jura que isso nunca mais se repetirá. Prefiro não saber, que se dane. Ou melhor, que se foda! Daqui por diante, apenas quem me trouxer muita sorte  e não apertar o tubo de creme dental no meio  vai poder chorar neste ombro e ainda receber flores no dia seguinte.

Coincidência ou não, independentemente de qualquer pranto, meus pensamentos têm a cor do vestido que ela deixará de usar daqui a pouquinho.

10/11/2020

CRÔNICA ESFARRAPADA


Sempre achei que fosse folclore essa história de que os escritores, de vez em quando, têm um bloqueio criativo e não conseguem produzir nada. Pois aconteceu comigo pela primeira vez: a síndrome da página em branco. Ou melhor, da tela do Word em branco. Já estou há horas na frente do computador tentando ter uma ideia, encontrar um assunto, divagar em cima de alguma fofoca, lembrar de coisas engraçadas (reais ou imaginárias) e nada. Nem um titulozinho fui capaz de inventar para servir de ponto de partida.

Logo o prazo de fechamento da coluna vai se esgotar e, caso o lado direito do meu cérebro continue em greve, existe uma grande possibilidade de eu ficar desempregado antes do fim do ano. Pensei em fazer como o Rubem Braga fazia quando não sabia o que escrever, ele mandava o leitor se catar e pronto, sugeria que ocupassem o tempo com coisas mais úteis ou que fossem ler outros colunistas e o deixassem em paz. Só que o Rubem Braga era o maior de todos, podia tudo. Enquanto euzinho, um ilustre desconhecido, se tentasse coisa parecida, correria o risco de não ser mais lido nem pela própria família.

Fácil mesmo seria falar sobre as eleições nos Estados Unidos, sobre a cara permanente de cu com cãibra do presidente Trump, ainda mais contraída e apatetada após a acachapante derrota. No campo dos fracassos, tirar sarro do Flamengo não é uma opção que se possa descartar, visto que seus zagueiros medianos e seus laterais idosos talvez rendam uns parágrafos. Mas é que já tem tanta gente comentando de política e futebol – e parece que o mundo gira em torno disso – que eu acabaria me transformando em mais um chato sem inspiração, fazendo de conta que entendo de tudo, cagando-regras e proferindo bobagens, uma espécie de Galvão Bueno das letras.

Assim, sob pressão, sobram poucas opções. Advogados escrotos? O preço do óleo de soja? Quem sabe a pandemia resulte em algumas linhas, sobretudo por que as vacinas que pipocam aqui e acolá coloquem em xeque o limite da inépcia dos que governam. A implantação do Pix é outro tema atraente, porém, infelizmente, não tenho cacife para discorrer acerca de nenhum aspecto econômico ou tecnológico do sistema bancário brasileiro, a não ser que "pix", na minha época, era somente uma agulhada de injeção.

Tanta coisa mereceria ser dita numa crônica. Pena que eu não seja um iluminado, com o poder de controlar as palavras a qualquer momento, que nem o Zuenir Ventura, por exemplo. Aliás, dou graças ao Senhor por conseguir controlar pelo menos o meu esfíncter e, de vez em quando, cometer um texto engraçadinho. Pensando bem, é melhor não escrever nada do que bostear uma constantinice qualquer. Vovô sempre dizia: em boca fechada não entra mosquito. Amanhã converso com o editor, não há de me faltar inspiração para uma boa desculpa esfarrapada.

13/08/2020

LOGÍSTICA


Foi no meio do nada que o carro pifou. Não exatamente no meio do nada, mas em um lugar bem longe de casa, sem comércio nem residências, apenas com várias pistas de avenida, um acostamento, uma ciclovia e metros e metros quadrados de calçamento, grama e árvores. O painel interno, iluminado por causa dos faróis acesos àquela altura da noite, de repente se apagou inteiro, ainda com o veículo em movimento. Arregalei os olhos e procurei a pista da direita, até conseguir encostar com segurança. O motor 1.8 já não dava mais sinal de vida.

Fazia alguns dias que eu abastecera com sete reais e cinquenta centavos, portanto, não podia acreditar que a pane tivesse ocorrido por falta de gasolina. Como o rádio funcionava, concluí que o problema não estava na bateria. Vasculhei de ponta a ponta a gigantesca paisagem urbana e não avistei nenhum posto de combustíveis. Então peguei um pedaço de mangueira de gás e uma garrafa plástica (que sempre carrego no porta-malas) e me aproximei do automóvel mais antigo estacionado nas redondezas, um modelo do tempo em que os tanques de gasolina não tinham chave. Eu só precisava de meio litro para dar novamente a partida. Introduzi uma ponta da mangueira na abertura e suguei a outra extremidade com toda a força. Engoli praticamente todo o líquido e acabei por perder os sentidos ali mesmo, na escuridão do passeio público.

Mentira.

Liguei o alerta e me refiz do susto. Girei a chave mais algumas vezes, sem resultado. Saltei do carro e passei a andar em torno dele (eu penso melhor caminhando), tentando achar uma solução para o incidente. Não havia guardas por perto, nem da polícia militar nem da guarda municipal. O celular, assim como o combalido Kadett 1998, estava mortinho da silva. Somente um andarilho meio bebum me observava da calçada, com olhar curioso. Perguntei quanto cobraria para ajudar a empurrar o possante até em casa e, para minha surpresa, ele topou por módicos dez reais. Antes que o homem mudasse de ideia, destravei o volante, desengatei a marcha e dei o primeiro impulso para movimentar as rodas. Pois foi assim: eu do lado esquerdo, ajeitando a direção pela janela, e o meu assistente empurrando a traseira por dez intermináveis quilômetros.

Mentira.

Caralhos me mordam! Foi o que eu disse quando o carro parou. Já passava das nove horas da noite de um dia cansativo e chuvoso, daqueles que custam a chegar ao fim e sempre reservam alguma surpresa desagradável perto de acabar. Com o celular sem carga na bateria, o seguro vencido e nenhum telefone público nas redondezas, não tive dúvidas: levantei os vidros, tranquei as duas portas da lata velha e corri para o ponto. Peguei o primeiro ônibus que ia na direção do meu bairro. "Amanhã mando guinchar essa merda", ainda pensei antes de embarcar.

06/08/2020

LETRA & MÚSICA


Era um casal aficionado da MPB e do pop-rock nacional. Sentados frente a frente, na pequena mesa redonda de um barzinho com som ao vivo, conversavam pela última vez antes da separação.

– Sei que você fez os seus castelos e sonhou ser salva do dragão.
– Eu apenas queria que você soubesse que esta menina hoje é uma mulher.
– Eu quero é viver em paz! Por favor, me beije a boca...
– Se você não entende, não vê...
– Eu quis dizer, você não quis escutar.
– O que me importa essa tristeza em seu olhar?
– Não tem jeito mesmo, não tem dó no peito, não tem nem talvez.
– Não pense na separação... não despedace o coração...
That’s over, baby! Freud explica.
– Agora que faço eu da vida sem você?
– Não me procure mais... assim será melhor, meu bem.
– Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e sons.
– Desculpe o auê, eu não queria magoar você.
– Eu nem sonhava te amar desse jeito.
– A emoção acabou...
– O que é que há? O que é que tá se passando com essa cabeça?
– Nada, nada, nada, nada!
– Nunca se esqueça, nem um segundo, que eu tenho o amor maior do mundo.
– Bem que se quis, depois de tudo, ainda ser feliz.
– Nada mais vai me ferir, eu já me acostumei.
– É isso aí.
– Então vem cá, me dá sua língua...

Beijaram-se despudoradamente durante alguns minutos. O que ela imaginou ser uma reconciliação, para ele era uma despedida. Pediram mais dois chopes, uma porção de fritas e retomaram o diálogo.

– Desejo que você tenha a quem amar.
– Mas não quero deixá-lo na mão nem sozinho no escuro.
I don’t want to stay here, I wanna to go back to Bahia.
– Eu prefiro as curvas da estrada de Santos.
– Devia ter me importado menos com problemas pequenos...
– Eu vejo flores em você!
– Pra ser sincero, não espero de você mais do que educação.
– Prefiro ser essa metamorfose ambulante...
– Eu tô voltando pra casa.
– Decida o que é bom pra você.
– Ah, mas o que você espera de mim...
– Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu.


Gabarito: Marina Lima (Erasmo Carlos), Gonzaguinha, Djavan, Kiko Zambianchi, Paralamas do Sucesso, Tim Maia (Cury Heluy), Geraldo Azevedo, Gilberto Gil, Zé Ramalho, Fernando Mendes, Leno & Lilian, Lulu Santos, Rita Lee, Guilherme Arantes, Cazuza, Fábio Jr., Blitz, Roberto Carlos, Marisa Monte, Legião Urbana, Ana Carolina & Seu Jorge, Seu Jorge, Frejat, Marina Lima, Paulo Diniz, Roberto Carlos, Titãs, Ira!, Engenheiros do Hawaii, Raul Seixas, Lulu Santos, Zélia Duncan, Raul Seixas, Chico Buarque.

LETRA & MÚSICA (2) – LEIA AQUI

16/07/2020

FICUS BENJAMINA


Subiu na figueira e não descia de jeito nenhum. Desde que a construtora descumprira o acordo de preservar as árvores e demolir apenas o sobrado, ele estava acorrentado aos galhos mais altos. Do pouco que havia no terreno onde nasceu, não ligava tanto para a casa. Sua grande paixão era a centenária figueira, onde costumava se refugiar depois das aulas na escolinha do bairro. Tratou de arranjar uma corrente e um cadeado assim que viu metade do pomar destruído pelas máquinas, e não teve dificuldade para subir a quase cinco metros de altura. Exigia uma intervenção judicial que garantisse o cumprimento do contrato.

Um pequeno grupo de curiosos e dois ou três fotógrafos da imprensa escrita já ocupavam parte da calçada do outro lado da rua. A família, também presente, reduzida a um irmão e à esposa, não compartilhava do mesmo sentimento pela causa. Os operários da obra paralisaram as atividades e aguardavam instruções do advogado da empresa.

Durante os três dias em que estava ali, alimentou-se de algumas balas que trouxera nos bolsos e bebeu água da chuva. Não queria conversa nem aceitava ajuda. Pensava nos melhores momentos de sua infância, no quanto tinha sido lindo aquele lugar e no balanço que o avô construíra para ele, pouco abaixo do galho em que agora se encontrava.


Pensou também no restante da cidade, absolutamente tomada por fábricas e edifícios. Carregava a impressão de que a figueira era o único pedaço de natureza sobrevivente, solitária como ele, na imensidão da selva de pedra. Lembrou dos milhares de pinguins mortos no litoral catarinense devido a um vazamento de óleo no mar e da devastação de metade da Floresta Amazônica em território mato-grossense para beneficiar plantadores de soja. Sentiu um súbito desânimo, muito maior que o cansaço pela posição incômoda no alto da árvore.

Perto da meia-noite, notou que a rua estava vazia. O vigilante da construtora fazia sua ronda do outro lado do terreno. Ele abriu o cadeado, soltou a corrente e desceu da velha figueira. Silenciosamente, caminhou pelas sombras até tomar o rumo de casa. Preferiu desistir antes que o considerassem louco. Não podia mesmo fazer mais nada.

07/07/2020

MUNDANA


– Já vou indo – ele diz, abotoando nervosamente a braguilha.
– Pode ficar se quiser.
– Não, não posso.

Levanto para levá-lo até a porta. Sinto a porra ainda quente me escorrer por entre as pernas. Visto o robe e esfrego uma coxa na outra enquanto caminho. O velho me estende duas notas de cem.

– Toma aqui.
– Não tenho troco.
– Não faz mal, semana que vem eu desconto.
– Tá.

Ofereço o rosto para um beijo, mas ele não entende. Me dá apenas um tapinha nas costas enquanto roça sua enorme barriga na minha cintura. Desaparece no fim do corredor. Fecho a porta, o telefone toca.

– Alô.
– Quem fala?
– Madre Teresa.
– Oi, gostosa!
– Vendeu as fotos?
– Vendi.
– Não acredito! Pros japoneses?
– É... e eles querem mais.
– De que tipo?
– Aquelas com a tua amiga, como é mesmo o nome?
– Marcinha.
– Isso mesmo.
– Me traz a grana hoje à noite que a gente combina.
– Só se tiver trepada.
– Nem pensar.
– Boquete?
– Não.
– Punhetinha!
– Fechado.

É o preço da eficiência. Desligo aliviada. Corro para o banheiro, nua pelo apartamento. Talvez um bom banho me lave a alma. Deixo a água correr no ar e depois pelo corpo. Esqueço um pouco do mundo lá fora.

Ao fechar o chuveiro, sinto frio, um arrepio que congela os ossos. Enxugo cabeça, tronco e membros. Quando finalmente paro em frente ao espelho, percebo as marcas dos dentes do velho nos meus peitos. Filho da puta! Procuro o pan-cake na gaveta, disfarço o que posso.

Visto minha melhor roupa de passeio, faço uma maquiagem discreta e não fico satisfeita. Só nascendo de novo, então. Saio pela garagem, atrasada, tentando me equilibrar no salto um tanto alto. Ela já me espera do outro lado da rua.

O carro não é o mesmo, mas é maior e mais bonito que o da última vez. Sorri quando me vê.

– Oi – cumprimento.
– Quinze minutos atrasada.
– Desculpa... vamos lá?
– Sinceramente, hoje eu só queria companhia.
– Sem problemas.

Entro no carro e sinto seu perfume.

– Vamos ao cinema?
– Vamos.

Ela abre a bolsa, tira um maço de cigarros e uma nota de cem.

– Toma...
– Não precisa.
– É pelo tempo perdido.

Aceito a nota. Ela acende um cigarro e dá uma tragada longa. Solta a fumaça pela janela e atira o cigarro na calçada. Nada entendo. Guardo meu dinheiro, já com o automóvel em movimento. Passo suavemente a mão em seus joelhos, em sua coxas, em sua barriga. Levanto sua saia e invado o delicado vale entre suas pernas. Sinto a umidade e o calor.

– Hoje não, por favor...
– Tudo bem.

Sei que não iremos a nenhum cinema. Rodamos sem parar, durante quase uma hora, pela cidade cinzenta e vazia. O céu escurece rápido, então peço a ela que me deixe no endereço – impossível de ser pronunciado – que mostro anotado em um guardanapo. Rimos juntas uma última vez.

Quando o carro para em frente à casinha verde, me despeço com dois beijos, um no rosto, outro na boca. Ela fica de ligar na próxima semana, o que consinto com um movimento de cabeça. Nem amor nem dor, apenas a sensação de dever cumprido.

Entro pelo portãozinho enferrujado e toco a campainha. Ouço passos do lado de dentro. Ele abre a porta, de pijama, um pouco despenteado, cara de sono.

– Oi, mulher!
– Não sou mais sua mulher, esqueceu?
– Pra mim é como se fosse...
– As crianças?
– Na escola.

Abro minha bolsa e tiro o bolo de notas que nem tive tempo de contar.

– Vim trazer o dinheiro.
– Ainda tem do mês passado.
– Não faz mal, compra alguma coisa pra você.
– Quer entrar? Acabei de passar um café.
– Não, não, tenho que ir.
– Tá.

Viro as costas e saio apressada pela rua sem calçamento. Noto um fio puxado na meia fina. Merda! Ajeito a calcinha que vai entrando na bunda. Chamo um táxi e relaxo um pouco. Tento lembrar de cabeça o número do telefone da minha amiga Marcinha.

27/06/2020

LE PASTICHE


Aconteceu na vizinhança, durante a minha meninice. Na casa ao lado, morava uma senhora chamada Cleunice. Tinha duas filhas: Beatriz e Berenice. A primeira, mais nova, muito feinha, quase não saía de casa, e era raro que alguém a visse. Já a mais velha, um azougue, desfilava pelo bairro, como se fosse uma misse. Não chegaram a conhecer o pai, vítima de parada cardíaca, bem no meio de um jogo de boliche.

Esqueçamos a pequena, pois não há tempo para disse me disse. A outra é que nos interessa, ainda que pareça tolice. Quando completou dezoito anos, começou a sonhar com o príncipe encantado ou com qualquer um que lhe sorrisse. Não tardou a ser correspondida, tamanha a sua brejeirice. Correu para contar à caçula, que desdenhou de tais sentimentos resmungando apenas: "Que enorme babaquice".

O pretendente era rico e bonito, recém-chegado de Nice. Gostava de jazz, de vinhos caros e das obras de Matisse. Apaixonara-se, desde o primeiro olhar, pela formosa Berenice. Decidiu que investiria nela, pois seus namoros anteriores tinham sido uma mesmice. Mandou flores, escreveu bilhetes, fez até serenatas, o que ela considerou criancice. Ele não se importou, ia conquistá-la ou não se chamava Maurice.

Mas nenhum esforço extra se fez necessário para que o destino os unisse. Eram praticamente duas fatias de pão de um mesmo sanduíche. Na tarde em que consentiu no casamento, lágrimas rolaram dos olhos de dona Cleunice. A noiva, que esnobara tantos pretendentes, só queria saber de passar a lua de mel em Garmisch. Agora não precisava mais procurar, e lutar contra a paixão seria, no mínimo, sandice.

Organizar a cerimônia foi uma chatice. As famílias optaram por poucas flores e vetaram músicas com tendência à pieguice. Beatriz presenteou a irmã com uma calcinha azul, e logo avisou que era para dar sorte, antes que a outra reagisse. O presente foi direto para o lixo, já que sorte maior não poderia haver, nem que um anjo do céu caísse. Escolheu uma lingerie da cor do vestido, desconsiderando qualquer crendice.

Vieram parentes distantes, assim que receberam o convite, tanto os jovens quanto os que beiravam a velhice. Uma foto dos nubentes foi parar na coluna social, como era de praxe: o cúmulo da breguice. Naquele mês de maio, vendo a igreja lotada, a mãe agradeceu, com uma fé tão grande que não havia quem medisse. Enquanto o noivo não cansava de repetir à sua amada: je t’aime ou ich liebe dich.

Caminhou sozinha até o altar a bela Berenice. Concentrou-se na imagem do elegante príncipe encantado, apesar de sentir a calcinha branca apertando, contendo-se para não cometer nenhuma macaquice. Ao seu encontro veio o futuro esposo, com um sorriso de ofuscante branquice. Escorregou no primeiro degrau, bateu a cabeça e morreu na hora, pobre Maurice. O padre, que era nordestino, exclamou incrédulo: "Vixe".

05/06/2020

UMA CRÔNICA DE SONHO


Garanto a vocês: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. A certa altura da noite, no quinto estágio do sono, nenhum especialista seria capaz de explicar como, de súbito, surge o sorriso maroto no rosto do paciente que estava dormindo seriamente até poucos minutos atrás, abarrotado de eletrodos pelo corpo. É por que o pobre especialista, obviamente, nunca sonhou com a mulher da sua vida.

Fascinante é visualizar nossa musa em imagens desconexas ou lógicas, em tecnicolor ou em preto e branco, tanto faz. Além de carregá-la na memória durante todo o dia, sonhar com seu sorriso, com seu olhar, com suas curvas, é como se fosse um complemento à falta que ela nos faz. Até num cochilo rápido após as refeições ela pode surgir, inesperadamente, doce como uma sobremesa.

Gostoso é sonhar que se está dirigindo sem destino com o nosso amor ao lado, no banco do carona, e que, em sonho, ela não liga para as nossas barbeiragens; é ouvir a campainha fora de hora, abrir uma porta imaginária e dar de cara com a sua pequena trazendo um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate que ela fez especialmente para o seu café da manhã hipercalórico.

Sensacional é sentir, no meio da noite, o próprio metabolismo corporal voltar a acelerar quando a mulher amada aparece trajando aquela blusinha justa, de um ombro só (que você considera vulgar e excitante ao mesmo tempo), já que na vida real ela não tem coragem de usar; é ter consciência de se estar inconsciente e tentar manter a concentração para que o sonho jamais chegue ao fim.

Femme Nue Couchée (Pablo Picasso, 1936)

Maravilhoso é realizar, ao menos dormindo, todos os desejos econômicos, emocionais, sexuais e gastronômicos de sua grande paixão; é sonhar que se está passeando de mãos dadas pela Champs Élysées num minuto e comendo um sanduíche de carne de segunda no sofá de casa no minuto seguinte, embora você mal conheça os países do Mercosul e ela seja vegetariana.

Supimpa é sonhar com um beijo roubado, ainda que, na realidade, o primeiro beijo em sua adorável parceira tenha sido cuidadosamente planejado (e executado com sucesso, ao que tudo indica); é continuar apaixonado, apesar de, em seus devaneios noturnos, ela às vezes ter apenas um olho, seis braços ou três peitos, sem que isso caracterize um pesadelo, muito pelo contrário.

Delicioso é rolar na cama, virtualmente abraçado em nossa musa inspiradora, num campo de girassóis pintado por Van Gogh; é vislumbrar o futuro com clareza e esquecer o passado nebuloso; é marcar um gol de bicicleta em final de campeonato ou subir ao palco e cantar Under My Skin com a voz do Frank Sinatra, tendo a certeza de que ela está na plateia prestigiando a sua falta de talento.

Pois reitero, então, caros amigos: bom mesmo é sonhar com a mulher amada. E de nada adianta o especialista em distúrbios do sono tentar justificar qualquer anormalidade, pois bem sei que ele não sabe de nada, afinal, nunca sonhou com a mulher da sua vida. Melhor ainda é despertar de um sonho desses, ao amanhecer ou no meio da noite, tanto faz, cheio de cuidados para não acordá-la.

29/05/2020

MICÇÃO


Ela nunca tinha visto um homem mijando. Nem irmão nem pai nem primo nem ex-namorado; nem em revista nem no cinema nem na internet. Nunca, ele soube mais tarde. Então começou a entender por que, nas primeiras vezes em que saía da cama para ir ao banheiro após o sexo, ela ficava espionando pela fresta da porta, em silêncio, olhos brilhantes, fixos nos jatos amarelados que jorravam de seu pau lambuzado para a cerâmica branquinha.

No começo, ele achava estranho, ficava encabulado, às vezes nem conseguia mijar, mas fazia de conta que não percebia. Depois de um tempo, passou a deixar a porta escancarada. Ela ficava encostada no umbral, nua, descalça, observando todos os seus movimentos.

Aquela vigilância durante a madrugada, às vezes pela manhã, provocava nele um tesão improvável: partia mijando de pinto murcho e terminava em riste, respingando pelas paredes. Ela ria, e também se excitava com a comédia.

Quando ia para o banheiro, sabia que ela viria junto. Quando não vinha, ele esperava pacientemente, de pé, tampa do bacio levantada, bexiga cheia, aguardando seu tiro de largada com o olhar.

No segundo mês, ela passou a ficar mais perto, com a bunda apoiada no granito da pia, braços cruzados. Eventualmente se encaixava atrás dele, segurava seu pau e, na ponta dos pés, olhando por cima dos ombros, mirava com precisão até acertar na água da privada. Ele teve de ensiná-la que é melhor apontar para as laterais do vaso e deixar o líquido escorrer, senão, além do barulho e da espuma, acabam voando algumas gotas para o chão.

O ritual se repetia diariamente, quase sem palavras. Então voltavam para a cama ou iniciavam uma nova sessão ali mesmo, ela com as mãos espalmadas no azulejo, pernas afastadas, buceta encharcada como ele nunca vira igual. Nunca, ele soube mais tarde.

Até que se separaram, tão rápido quanto um jato de urina. Incompatibilidade fora da cama, divergências políticas ou religiosas, ninguém soube listar exatamente os motivos. Ela deixou de segui-lo ao banheiro, depois deixou de atender seus telefonemas, depois sumiu de sua vida. Não totalmente, na verdade. Ainda hoje, sempre que precisa mijar, ele sente seu olhar curioso por trás da porta entreaberta.

10/05/2020

ESPIRAL DO SILÊNCIO


Somos cinco na mesa de sempre, perto da janela, à esquerda da porta de entrada. As outras mesas da cantina também estão ocupadas. Os músicos deram uma pausa, as pessoas agora falam e riem um pouco mais baixo. Estamos na quinta rodada de vinho e polenta.

Meu amigo Júlio me aponta um homem no balcão do bar. Ana, Lúcio e Lígia viram-se para olhar.

– É aquele nojento do Gustavo! – diz Ana, franzindo as sobrancelhas.
– Eu até que gosto dele, sujeito bacana – pondera Lúcio.

Guga Menezes é artista plástico. Estudamos juntos, os seis, nos últimos anos do colegial. Ele foi muito famoso e ganhou algum dinheiro, hoje está pobre e é soropositivo. Aceno para que venha beber conosco.

Ana pede licença, levanta-se e vai ao banheiro. Lúcio e Lígia enchem suas bocas de polenta.

– Ora, ora... como vão os inseparáveis?
– Vi você no jornal um dia desses – eu digo.
– Ah, é... foi no sábado, me entrevistaram para saber de um argentino que pagou dez mil por uma escultura minha, nem acreditei.
– Caralhos me mordam! – exclama Júlio, sem se conter.

Guga nos conta que já não tem ânimo para o trabalho, mas que fará uma última exposição, de quadros e esculturas, no fim do próximo mês, no Museu de Arte. Convida a todos para o evento e se despede:

– Pois bem... não vou mais constranger os amigos com a minha presença, espero revê-los em breve.

O artista toma outro gole de vinho e volta ao bar, enquanto Ana retoma seu lugar à mesa.

– Onde é que você se meteu? – pergunto.
– Tava no banheiro.
– E mijou durante quinze minutos?
– Vai te foder, Júlio! – Ana se exaspera, aos prantos.

Entreolhamo-nos. Lígia incentiva:

– O que foi, querida? Fala pra gente...
– A culpa é minha! Podem me denunciar!
– Culpa de que, querida? Não estamos entendendo.
– Eu infectei ele... trepei com ele de propósito.

Os músicos voltam a tocar, ninguém ouve a voz de ninguém.

Meia hora depois, pagamos nossa conta e vestimos nossos casacos. Todos os lugares ainda estão ocupados, há uma fila de espera do lado de fora da cantina. Na calçada, nada de abraços. Cada um, em seu íntimo, sabe que nunca mais seremos cinco na mesa de sempre.

20/04/2020

O PASSAGEIRO (2)


O vidro do ônibus é uma poeira só. Ele suja a manga da camisa de flanela tentando limpar. Fica agoniado se não consegue olhar para fora, ver as pessoas na calçada, as lojas se fechando. Prepara-se para dar um esporro no cobrador antes de descer, não admite que deixem um vidro sujar assim. Salta e continua a pé.

Passa por um cara que voa por dentro de uma argola em chamas, com um monte de desocupados espiando em volta. Uns aplaudem, outros riem, mas não pagam um centavo pelo espetáculo. Tem também uma indiazinha que vende bichos de madeira, sempre no mesmo lugar, com um bebê no colo. Aposta como ela nunca vendeu nenhum bicho daqueles. Quando tiver algum dinheiro sobrando, vai ajudar comprando uma capivara ou uma onça-pintada.

Para em frente à padaria. O cheiro de pão fresquinho invade meio quarteirão, e ele sem um puto no bolso. Nem lembra mais o que comeu no almoço. Arroz, ovo frito e salada de tomate, talvez tenha sido isso. Deve haver no armário umas bolachas para molhar no café.

Dona Cassiana vem passando e lhe cobra o aluguel atrasado. Ele pergunta se ela não quer trocar por uma trepada mais tarde no quartinho. A coroa ri, não diz nem que sim nem que não. Treparam apenas uma vez, logo que foi morar na casa dela, antes de o marido morrer. Mulher peituda sempre foi seu fraco. Dona Cassiana até que é boa de cama, deixa fazer de tudo, menos meter atrás, diz que é contra as leis na natureza. Tudo bem, já se satisfaz se ela o deixa pegar nos peitos. Só tem de ser em silêncio, para a vizinhança não ficar sabendo.

A criançada deixa de jogar bola e pede para ver o seu Fender. Abre o estojo e mostra o instrumento importado. Avisa para ninguém encostar, não quer marca de dedo. Alguns não chegam perto porque têm medo. Na verdade, as mães é que têm medo e dizem para os filhos não chegarem perto do "marginal que mora na pensão da cafetina". Coisa que odeia é mulher que se faz de santa, dessas que dizem para os filhos não chegarem perto desse ou daquele.

Pensando com seus botões, conclui que é melhor botar medo do que sentir medo. O medo faz doer o estômago. O sujeito perde a fome, fica brocha, tem dor de cabeça, úlcera, vomita sem motivo, não dorme direito nunca mais na vida.

Agora é o cheiro de mofo que aumenta, sabe que está perto de casa. Pega a chave debaixo do assoalho. Tropeça no tapete antes de entrar. Esbraveja em voz alta. Acende o interruptor, fecha a porta e larga o contrabaixo num canto. Liga o televisor no telejornal da noite. Abre o chuveiro frio. Daqui a pouco a dona Cassiana aparece e ele precisa estar limpinho para ela chupá-lo sem nojo.

10/03/2020

O PASSAGEIRO


Todos buzinam ao mesmo tempo, o trânsito não anda. Ele salta do táxi, batendo a porta com força. Sai caminhando por entre os carros. O motorista xinga sem convicção. Ele faz de conta que não ouve. Não paga a corrida e o chofer continua íntegro.

Ajuda uma idosa a atravessar a rua. Ela não enxerga muito longe, e isso o comove. Parece bastante com sua avó, apenas um pouquinho mais corcunda. Nenhuma senhora faz bolinhos de chuva melhor do que a sua avó. Saudade dela e dos bolinhos. Quando a velhota chega ao outro lado, agradece a ajuda, pede a Deus que o abençoe. Não foi nada! Ela mal sabe que ele já é abençoado.

Anda um pouco mais rápido. Queria parar para rezar, mas precisa chegar ao ensaio e está atrasado. Pensando bem, não precisa chegar em lugar nenhum. Os caras que esperem, pois se ele não chegar, ninguém toca. Não existe banda de rock sem baixista. Diminui o passo e vai arquitetando um nome para o grupo. Também não existe banda sem nome. O Rinaldo sugeriu chamar de Clitóris Intumescido. Ele não acha ruim, entretanto, prefere arranjar coisa pior.

Reza baixinho pelo caminho, inventando uma oração. Toda vez que passa sobre o viaduto da igreja sente uma vontade louca de se jogar.

A porta da garagem está aberta. Ouve o barulho dos instrumentos desafinados lá dentro. Rinaldo reclama do atraso e ele responde: Vai tomar no cu! Pega de volta o Fender e sai. Não quer tocar numa banda sem nome, tem mais o que fazer da vida. Ninguém contesta.


Agora chuta uma latinha de refrigerante pela rua. Faz um esporro danado, as pessoas ficam olhando para ele. O baixo parece de chumbo, faz doer seu braço. Sempre quis tocar numa banda de rock, mas com caras legais, tipo o Nasi e o Scandurra, não com umas bichonas feito o Rinaldo e os primos dele.

Planeja ir para casa pensar. Só consegue pensar em casa, de banho tomado e barriga cheia. Imagina que deve haver um monte de bandas de rock precisando de baixista, ainda mais um que tenha um Fender bonito e caro que nem o dele, modelo precision bass, pesado que nem chumbo, que faz doer o braço.

Senta num ponto de ônibus com o estojo no colo. Mora na casa do caralho, nem sabe se passa a sua linha por ali, está acostumado a voltar de carona com o Rinaldo. Ao lado, um casal se beija. Pode ouvir até o barulhinho da saliva passando de uma língua para a outra. Não consegue deixar de olhar. O rapaz é preto e a guria é branca. Dizem que preto é mais bem-dotado, vai ver por isso ela o escolheu. O pau entra pela buceta e vai até o estômago.

Ele escuta os dois falarem em casamento. Acabarão casando mesmo, vão se encher de filhos, acompanhar novela da Globo, cagar de porta aberta. E não há nada pior do que cagar de porta aberta! Só novela da Globo, filosofa silenciosamente.

Quando o ônibus chega, tem sono e fome. Daria qualquer coisa por um pão com mortadela. Escora-se na janela e põe o contrabaixo no banco que sobrou. Não quer ninguém sentando perto. A cidade vai ficando azulada, mas ele cochila antes de reparar nisso.

03/03/2020

BLIND DATE


O problema é que a moça tinha dois queixos. Depois da primeira impressão, todo o resto parecia perfeito: roupas discretas, bolsa de couro natural, cabeça proporcional ao corpo, pele bem tratada, olhos claros muito grandes, dentes no lugar, sorriso bonito, orelhas pequenas, voz suave, narizinho arrebitado, unhas bem-feitas. Mas havia esse detalhe, do qual ele não conseguia desviar a atenção.

Aprendera em aulas de etiqueta que, ao conversar com qualquer pessoa, deve-se sempre fixar o olhar na região nasal, mais ou menos na altura das maçãs do rosto. No entanto, no caso de sua interlocutora, a tarefa parecia impossível. Abaixo da boca vinha o queixo e, em seguida, uma enorme papada, que ocupava o espaço onde deveria estar o pescoço e se estendia até o Bósforo de Almasy.

A conversa seguia agradável. Tinham gostos parecidos para música, cinema e literatura, trabalhavam em áreas afins, moravam em bairros vizinhos e, em épocas diferentes, estudaram no mesmo colégio. Vasculhando as árvores genealógicas, descobriram inclusive um parente comum nas gerações passadas. Porém, apesar de tantas coincidências, ela possuía dois queixos e ele, por sorte, apenas um.

Quando ela pediu licença para ir ao banheiro, ele aproveitou para reparar nos outros atributos de sua acompanhante. Tentava encontrar uma explicação para o único defeito que percebera até o momento. Talvez fosse uma gordinha que emagreceu, daí a sobra de pele na região. Contudo, o que viu foi um andar gracioso, uma bundinha firme e empinada, numa silhueta absolutamente esbelta.

Tarde da noite, ele pagou a conta, ainda sem saber se gostaria de encontrá-la novamente. Caminharam lado a lado até o estacionamento. Assim, de perfil, sob a luz da Lua, os dois queixos pareciam muito mais assustadores do que de frente, iluminados artificialmente no interior do bar. Ela abriu a bolsa, puxou um cigarro e perguntou se ele tinha fogo. Aliviado, respondeu sorrindo:

– Desculpe, eu não me relaciono com fumantes em hipótese alguma.

03/12/2019

VERBORRAGIA


Claridade. Despertador, música, sono, preguiça. Remela. Chuva, bocejo, chinelo, tropeção. Banheiro. Tampa, assovio, urina, chão. Espelho. Água, nariz, sabonete, toalha. Televisão. Café, leite, pão, manteiga. Bafo. Escova, pasta, gengiva, siso. Roupeiro. Terno, camisa, gravata, sapato. Estrada. Buzina, freio, estacionamento, calma. Pesadelo. Repartição, escada, sala, computador. Dinheiro. Futuro, sonho, sacrifício, destino. Tempo. Relatório, lentidão, prece, refeição.

Fome. Arroz, feijão, bife, ovo. Fila. Livraria, banco, banca, sorvete. Ponto. Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho. Cafezinho. Secretária, saia, panturrilha, loa. Chefe. Bigode, piada, suor, risada. Recomeço. Cadeira, óculos, chiclete, cacoete. Déjà-vu. Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho. Janela. Distração, passado, viagem, paixão. Fadiga. Drágea, pomada, massagem, emplastro. Desejo. Campo, árvore, fruta, sossego. Crepúsculo. Rebanho, porteira, alívio, rua.


Movimento. Povo, odor, fofoca, sombrinha. Carro. Rádio, atalho, multa, palavrão. Namorada. Confeitaria, beijo, morango, regime. Planejamento. Conversa, família, noivado, casamento. Carona. Banho, cama, língua, Tampax. Suspiro. Silêncio, vazio, cafuné, perspectiva. Novela. Abraço, sofá, relógio, noite. Olhar. Lágrima, remorso, reclame, porta. Ternura. Perfume, pele, toque, afinidade. Compensação. Dó, ré, mi, falo. Vento. Rosto, endereço, distância, paz.

Garagem. Correspondência, elevador, chave, luz. Blues. Cueca, cerveja, mensagem, amendoim. Telefone. Pai, mãe, irmão, prima-irmã. Luar. Sacada, rede, saudade, cochilo. Ablução. Barba, loção, reunião, prazo. Poltrona. Pé, pufe, arroto, controle. Futebol. Lateral, centroavante, cabeça, gol. Pizza. Borda, atum, calabresa, sobra. Caneta. Conta, lista, rabisco, passaralho. Modorra. Pepsamar, pijama, travesseiro, lençol. Madrugada. Refluxo, ronco, apneia, solidão.

19/11/2019

DIAS DE CRIANÇA (2)


Eu devia ter uns seis ou sete anos de idade, e isso já faz algum tempo. A tevê estava sintonizada numa luta de boxe. Logo ao lado, minha mãe passava roupas e cantarolava uma canção de Sérgio Bittencourt.


🎶 Olho a rosa na janela, sonho um sonho pequenino 🎶


Eu brincava com os meus carrinhos Matchbox e, de vez em quando, dava uma espiadinha no combate, no qual um mulato de calção preto permanecia fixo no meio do ringue, enquanto o outro, um loiro de calção vermelho, girava em torno dele.


🎶 Se eu pudesse ser menino, eu roubava essa rosa 🎶


O locutor, esgoelando-se, avisava que o juiz acabara de descontar mais um ponto do pugilista do corner rubro. Minha mãe, sem levantar os olhos da tábua de passar, me perguntou, fingindo interesse: "Ele disse pugilista ou fugilista, meu filho?"


🎶 E ofertava, todo prosa, à primeira namorada 🎶


Com propriedade, eu que já era um ás no boxe, apesar da pouca idade, impostei minha voz aguda para respondê-la: "Acho que ele disse fugilista, mamãe, porque esse branquelo fica fugindo o tempo todo!"


Ela assentiu e continuou cantarolando a melodia, agora sem a letra.