Subiu na figueira e não descia de jeito nenhum. Desde
que a construtora descumprira o acordo de preservar
as árvores e demolir apenas o sobrado, ele estava acorrentado
aos galhos mais altos. Do pouco que havia no
terreno onde nasceu, não ligava tanto para a casa. Sua
grande paixão era a centenária figueira, onde costumava
se refugiar depois das aulas na escolinha do bairro. Tratou
de arranjar uma corrente e um cadeado assim que viu metade
do pomar destruído pelas máquinas, e não teve dificuldade
para subir a quase cinco metros de altura. Exigia
uma intervenção judicial que garantisse o cumprimento
do contrato. Um pequeno grupo de curiosos e dois ou três fotógrafos
da imprensa escrita já ocupavam parte da calçada
do outro lado da rua. A família, também presente, reduzida
a um irmão e à esposa, não compartilhava do mesmo
sentimento pela causa. Os operários da obra paralisaram
as atividades e aguardavam instruções do advogado da
empresa. Durante os três dias em que estava ali, alimentou-se de
algumas balas que trouxera nos bolsos e bebeu água da
chuva. Não queria conversa nem aceitava ajuda. Pensava
nos melhores momentos de sua infância, no quanto tinha
sido lindo aquele lugar e no balanço que o avô construíra
para ele, pouco abaixo do galho em
que agora se encontrava.
Pensou também no restante da cidade, absolutamente
tomada por fábricas e edifícios. Carregava a impressão
de que a figueira era o único pedaço de natureza sobrevivente,
solitária como ele, na imensidão da selva de pedra.
Lembrou dos milhares de pinguins mortos no litoral catarinense
devido a um vazamento de óleo no mar e da devastação
de metade da Floresta Amazônica em território
mato-grossense para beneficiar plantadores de soja. Sentiu
um súbito desânimo, muito maior que o cansaço pela
posição incômoda no alto da árvore. Perto da meia-noite, notou que a rua estava vazia. O
vigilante da construtora fazia sua ronda do outro lado do
terreno. Ele abriu o cadeado, soltou a corrente e desceu da
velha figueira. Silenciosamente, caminhou pelas sombras
até tomar o rumo de casa. Preferiu desistir antes que o
considerassem louco. Não podia mesmo fazer mais nada.
– Já vou indo – ele diz, abotoando nervosamente
a braguilha. – Pode ficar se quiser. – Não, não posso. Levanto para levá-lo até a porta. Sinto a porra ainda
quente me escorrer por entre as pernas. Visto o robe e
esfrego uma coxa na outra enquanto caminho. O velho
me estende duas notas de cem. – Toma aqui. – Não tenho troco. – Não faz mal, semana que vem eu desconto. – Tá. Ofereço o rosto para um beijo, mas ele não entende.
Me dá apenas um tapinha nas costas enquanto roça sua
enorme barriga na minha cintura. Desaparece no fim do
corredor.
Fecho a porta, o telefone toca. – Alô. – Quem fala? – Madre Teresa. – Oi, gostosa! – Vendeu as fotos? – Vendi. – Não acredito! Pros japoneses? – É... e eles querem mais. – De que tipo? – Aquelas com a tua amiga, como é mesmo o nome? – Marcinha. – Isso mesmo. – Me traz a grana hoje à noite que a gente combina. – Só se tiver trepada. – Nem pensar. – Boquete? – Não. – Punhetinha! – Fechado. É o preço da eficiência. Desligo aliviada.
Corro para o banheiro, nua pelo apartamento. Talvez
um bom banho me lave a alma. Deixo a água correr no ar
e depois pelo corpo. Esqueço um pouco do mundo lá fora. Ao fechar o chuveiro, sinto frio, um arrepio que congela
os ossos. Enxugo cabeça, tronco e membros.
Quando finalmente paro em frente ao espelho, percebo
as marcas dos dentes do velho nos meus peitos. Filho
da puta! Procuro o pan-cake na gaveta,
disfarço o que posso. Visto minha melhor roupa de passeio, faço uma maquiagem
discreta e não fico satisfeita. Só nascendo de
novo, então.
Saio pela garagem, atrasada, tentando me equilibrar no
salto um tanto alto. Ela já me espera do outro lado da rua. O carro não é o mesmo, mas é maior e mais bonito que o
da última vez. Sorri quando me vê. – Oi – cumprimento. – Quinze minutos atrasada. – Desculpa... vamos lá? – Sinceramente, hoje eu só queria companhia. – Sem problemas. Entro no carro e sinto seu perfume. – Vamos ao cinema? – Vamos. Ela abre a bolsa, tira um maço de cigarros e uma nota
de cem. – Toma... – Não precisa. – É pelo tempo perdido. Aceito a nota. Ela acende um cigarro e dá uma tragada
longa. Solta a fumaça pela janela e atira o cigarro na calçada.
Nada entendo.
Guardo meu dinheiro, já com o automóvel em movimento.
Passo suavemente a mão em seus joelhos, em sua coxas,
em sua barriga. Levanto sua saia e invado o delicado vale
entre suas pernas. Sinto a umidade e o calor. – Hoje não, por favor... – Tudo bem. Sei que não iremos a nenhum cinema. Rodamos sem
parar, durante quase uma hora, pela cidade cinzenta e vazia.
O céu escurece rápido, então peço a ela que me deixe
no endereço – impossível de ser pronunciado – que mostro anotado em um guardanapo. Rimos juntas uma
última vez. Quando o carro para em frente à casinha verde, me
despeço com dois beijos, um no rosto, outro na boca. Ela
fica de ligar na próxima semana, o que consinto com um
movimento de cabeça. Nem amor nem dor, apenas a sensação
de dever cumprido. Entro pelo portãozinho enferrujado e toco a campainha.
Ouço passos do lado de dentro. Ele abre a porta, de
pijama, um pouco despenteado, cara de sono. – Oi, mulher! – Não sou mais sua mulher, esqueceu? – Pra mim é como se fosse... – As crianças? – Na escola. Abro minha bolsa e tiro o bolo de notas que nem tive
tempo de contar. – Vim trazer o dinheiro. – Ainda tem do mês passado. – Não faz mal, compra alguma coisa pra você. – Quer entrar? Acabei de passar um café. – Não, não, tenho que ir. – Tá. Viro as costas e saio apressada pela rua sem calçamento.
Noto um fio puxado na meia fina. Merda! Ajeito a calcinha
que vai entrando na bunda. Chamo um táxi e relaxo
um pouco. Tento lembrar de cabeça o número do telefone
da minha amiga Marcinha.