24/06/2024

AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA


Vou confessar a vocês: sempre gostei de escrever, desde pequeno. Os meninos da rua em que eu morava se reuniam para jogar bola, soltar pipa ou andar de bicicleta, e eu ficava em casa, escrevendo, tocando violão ou lendo. Escrevia letras de música, roteiros, poemas, pequenos contos e até um diário relativamente secreto.

Minha mãe, quando lia alguma redação nos meus cadernos de escola, dizia afetuosamente: "Tu levas jeito pra cacete, meu filho". A primeira namorada, que às vezes roubava o meu diário para ver se eu não andava apaixonado por outra, também comentava: "Você leva jeito pra cacete, Cachorrinho". E as professoras de Língua Portuguesa, apesar de me considerarem um tanto disperso, elogiavam com frequência: "O senhor leva jeito para cacete, pode acreditar". Até que me tornei um cacete, pois parecia ser essa a minha vocação.

Claro que joguei bola, soltei pipa e andei de bicicleta. Namorei outras meninas depois da primeira namorada. Entretanto, foi só lá pela oitava série que ganhei a primeira nota dez em Redação. No mesmo ano, o aluno mais desajustado da escola, o Miguel, publicou um livro. Lembro que, na época, apenas pensei com os meus botões: "Porra".

Imediatamente, comecei a desenvolver uma saga que levou todo o segundo grau para chegar ao fim. Era uma história – sobre um guri de onze anos que descobria que tinha um tumor no cérebro e precisava dar um jeito de comer uma vizinha para não morrer virgem – que não se aplicava nem a crianças nem a adolescentes, portanto, impublicável.

Desiludido com a primeira tentativa fracassada, deixei a Literatura de lado e comprei uma guitarra. Foi um período de vacas gordas. E também de vacas magras, altas, baixas, pretas, brancas, novas, velhas e japonesas. Sobre dinheiro, não posso dizer nada, mas é certo que músicos ganham mais mulheres do que escritores.

Já na faculdade de Letras, década de 1990, uma adorável professora de Linguística voltou a repetir a frase que me era tão familiar: "Você leva jeito, rapazinho". "Pra cacete?", eu perguntei. "Não, não, acho que você dá para cronista". Dessa vez não me deixei influenciar. Nunca dei nem para cronista nem para contista nem para poeta.

Então, o tempo passou. Muito mais tempo do que eu gostaria, aliás. Li bastante e escrevi pouco, até sofrer um espasmo de lucidez (talvez fossem gases, não tenho certeza) e ganhar novo ânimo para exercitar esse meu dom: o dom de transformar fatos irrelevantes em entretenimento barato. Depois de um livrinho de contos recém-publicado, acredito ser agora a derradeira chance de deixar de ser o cacete que sempre fui, além de preservar a integridade das minhas partes peripopéticas, sobretudo aquela onde o sol não brilha e que só a terra há de comer.


Hotel Hannover (Mondru, 2024)

22/06/2024

JOZIANE


A Joziane era a menina mais bonita do meu bairro. Antes mesmo de eu conhecê-la, logo que me mudei para a casa nova com meus pais e irmãos, já ouvia os outros meninos falarem maravilhas sobre ela. Diziam que era uma deusa, uma princesa, uma bênção divina, cuja beleza era indescritível e, sobretudo, inalcançável.

Além dos guris da rua, algumas gurias também teciam elogios à outra, que, curiosamente, não era vista como concorrente. Contavam que a Joziane era uma amiga exemplar, que jogava vôlei como ninguém, que era carinhosa com a família, que ia bem na escola, enfim, que possuía incontáveis qualidades. Era tão sem defeitos, que não gostava de festas e não tinha namorado, pelo que pude apurar na vizinhança.

Assim que descobri seu endereço, a uns dois quilômetros de onde eu morava, passei a rodear sua casa com frequência, montado na minha bicicleta Caloi de dez marchas. Quando não estava na escola, era certo eu estar dando voltas pela frente do quintal da Joziane, ansioso por encontrá-la ao vivo pela primeira vez.

Ainda correram alguns dias até o momento esperado. Da porta dos fundos da construção simples, de madeira, ela saiu segurando um balde de roupas recém-lavadas, e pôs-se a estendê-las no varal, sem notar minha presença, espiando encantado por entre as frestas do cercado. Joziane tinha olhos da cor do céu, cabelos dourados como o Sol e uma pele tão branca quanto a areia de uma praia selvagem.

Durante vários meses eu sonhei com ela, vigiei sua casa, guardei seu andar e seus gestos na minha memória de moleque. A Joziane devia ser uns três ou quatro anos mais velha que eu, praticamente mulher feita se comparada a mim, um fedelho de dentes tortos, pernas finas e espinhas na cara.

Quando meus pais anunciaram que nos mudaríamos novamente, caí doente. Não conseguia me conformar em ter de viver longe da Joziane, aquela que eu elegera para ser a mãe dos meus filhos, mesmo jamais tendo lhe dirigido a palavra. A febre e as dores pelo corpo só aplacaram quando não havia mais jeito. O caminhão partira com as nossas coisas, inclusive a minha bicicleta, da qual eu nunca mais quis saber.

Quase trinta anos se passaram, mas nem precisei de tanto tempo para esquecê-la, apesar de não ter encontrado nenhuma outra como ela. Cultivei diversos amores, boa parte platônicos, e até me casei em duas oportunidades, mas de vez em quando me pego imaginando como teria sido a vida ao lado da Joziane.

Agora, espiando envergonhado por uma fresta do cercado, vejo sair uma senhora com um cesto de roupas recém-lavadas pela porta dos fundos da construção simples, toda de alvenaria. Tem os cabelos desgrenhados e a pele maltratada pelo sol, porém, seus olhos azuis continuam sendo os mais lindos do bairro. A dona Joziane logo tratou de pendurar as peças no varal, displicentemente, sem notar a minha presença.